VICELAND HOJE
O dia em que tomei Daime com Glauco
Nunca fui do tipo religioso. Tenho alergia a incenso, prefiro Xava à Shiva, e soco a cara do primeiro sacana que vier mexer no meu terceiro olho. Do catolicismo só curto o vinho e os pecados; dos evangélicos, as belas histórias sobre a maestria das crentes em usar o sexo anal para preservar a virgindade. Mas ali estava eu, municiado com todo o meu arsenal de descrenças e ironias, pronto para passar a noite bailando e bebendo Santo Daime no alto do Pico do Jaraguá, em São Paulo, na comunidade Céu de Maria, presidida pelo cartunista Glauco Villas Boas.
A cerimônia daquela noite prometia ser “um trabalho forte”, comentavam daimistas circulando em suas roupas brancas. Era Dia de Finados, 2 de novembro de 1998, e as energias dos mortos corriam soltas pela mata atlântica.
Eu era então um estudante do terceiro ano de jornalismo (naquele tempo era preciso ter diploma para ser jornalista), carregando na cara as últimas espinhas de uma adolescência inconclusa e a barbicha rala de uma vida adulta mal começada. Subi o Jaraguá para ajudar uma colega de facul que preparava uma matéria sobre o Daime para uma “revista para jovens” chamada “Putz”. Na mochila, levava uma das preciosidades da minha coleção de gibis, o primeiro número da revista “Geraldão”, de 1987, para ser autografada por Glauco. Era dessa revista a história em que Geraldão chegava mais perto de foder com a própria mãe, enquanto embebedava a véia e dizia coisas românticas como “mãe, lembra o tempo em que eu mamava nesse peitão? era do caralho, né?”.
Eu adorava o humor sacana dessas histórias. Difícil acreditar que o criador de personagens como Doy Jorge ou Dona Marta pudesse ser o sacerdote de alguma religião. E era: ali no Céu de Maria ele se tornara o Padrinho Glauco. Comandava os trabalhos religiosos e compusera dezenas de hinos que eram cantados durante as cerimônias, com letras e melodias recebidas diretamente do mundo espiritual. Na capa deste hinário, batizado Chaveirinho, um velho barbudo segurava uma chave gigante naquele inconfundível traço falsamente tosco de Glauco, que eu acostumara a ver ilustrando pintos de bimbolovers e peitos caídos de secretárias ninfomaníacas.
Não havia contradição entre Glauquito e o padrinho Glauco: o que ele fazia nos quadrinhos era uma “sátira”, ele explicou. “O Geraldão, por exemplo, é uma sátira àquele cara alienado”, disse. Contou que foi muito zoado por Angeli e Laerte, parceiros de bandalheiras que não compartilhavam do seu interesse religioso. “O Laerte foi do Partido Comunista e o Angeli sempre foi de esquerda, então eles têm aquela visão negativa da religião”, comentou. A zoeira diminuiu quando os amigos perceberam como o Daime havia feito bem para Glauco: “Eles viram como eu mudei”. Ainda que Laertón e Angel Villa não tivessem se animado a bailar vestidos de branco com o chá de plantas amazônicas rodopiando na cabeça, aprenderam a respeitar a decisão do amigo.
“Você gosta do Geraldão? Então hoje você vai conhecer o Miraldão”, Glauco sorriu. Era uma referência à “miração”, momento mágico do culto daimista em que o bebedor do chá abre as portas da sua percepção e dá de cara com Deus, a Verdade, o Eu Superior ou qualquer outro conceito grandioso de caixa alta. O grande nariz e o jeito doce, tranquilo, de um cara que parecia ter encontrado a paz, são os traços que ficaram de Glauco na minha lembrança daquele dia.
Quando assumia o comando dos trabalhos do Daime, Glauco deixava a doçura de lado e se tornava o sacerdote severo, orientando a multidão e tocando acordeom. Dava para ver que levava a religião muito a sério. Talvez isso explique porque o humor de Glauco dos últimos anos tenha se limitado a seguir a trilha aberta nas décadas anteriores, enquanto Angeli se renovou (virando a charge política do avesso, por exemplo) e Laerte levou às tiras onde nenhum cartunista jamais esteve. É como se Glauco não precisasse do humor para fazer grandes questionamentos ou mergulhar em incursões filosóficas. Como já havia encontrado todas as respostas na religião, Glauco continuou a usar os quadrinhos para zoar — do jeito mais irresponsável, descompromissado e engraçado possível.
Eu não estava a fim de tomar o Daime. Embora cético, sempre fui curioso: já havia tomado o tal chá em outras duas ocasiões, acompanhando os colegas ripongas da faculdade. Nas duas vezes, experimentei uma leve brisa e alguma vontade de vomitar. Nada de mais. Assim que cheguei ao Céu de Maria, cheguei a dizer ao Glauco que havia comido carne, para ver se ele me autorizava a assistir à cerimônia sem beber o chá. É que a carne é duplamente proibida antes da cerimônia: recomenda-se três dias sem comer carne nem fazer sexo antes de uma cerimônia (por sorte, permanecer em abstinência sexual não era exatamente uma dificuldade para mim naqueles dias). Mas Glauco perdoou meu pecado carnal e me deixou claro que eu deveria beber o chá para fazer a reportagem. O Daime não admite voyeurs. Quer assistir? Beba. Preenchi um formulário no qual declarava não tomar remédios controlados nem possuir problemas mentais, paguei uma taxa (acho que hoje seria o equivalente a R$ 50) pelo chá e me preparei para a cerimônia da noite.
Enquanto esperava, fiquei conversando com os frequentadores do Céu de Maria. Percebi que se reuniam em torno chá pessoas com caminhos e crenças bem diferentes. Havia de tudo: um militar buscando na bebida algum tipo de equilíbrio interior, atores procurando uma compreensão da vida e do humano que aprimorasse sua arte, um umbandista que relacionava as visões das sessões de Daime com as divindades que incorporava no terreiro…
Caía a noite. A cerimônia começou. O bailado ocorria em uma grande tenda, reunindo umas duzentas pessoas. Os “fardados”, fiéis uniformizados que compõem uma espécie de clero do Daime, tocavam a música e puxavam os hinos. Todos vestiam branco: mulheres de um lado, homens de outro. Masculino e feminino, Yin e Yang, essas coisas. Em pé, o livrinho dos hinos nas mãos, dançávamos discretamente. Passinho para lá, passinho para cá. Os hinos me lembravam os cantos das missas católicas que me torturavam durante a infância e muito me incentivaram na minha opção pelo ateísmo. Hora de tomar o chá: como numa eucaristia, fizemos fila para receber as doses de uma bebida avermelhada, muito forte e amarga, um milk-shake de jiló. De volta ao meu lugar. Passinho para lá, passinho para cá. Música ruim, taxa de consumação elevada, dancinhas malas, mulheres só do outro lado do salão… que mico de programa, eu pensava.
Melhorou um pouco no primeiro intervalo do bailado, quando acompanhei um grupo de caras da minha idade que saiu para fumar maconha num mato próximo. Não era exatamente uma escapadinha. Segundo eles, estavam “complementando o ritual”: após receberem o Daime, que era o Princípio Masculino, o Pai, precisavam fazer o casamento com o Princípio Feminino, a Mãe, que eles chamavam de “Santa Maria” — prima de Mary Jane, irmã de Marijuana. O uso da maconha é um assunto sobre o qual ninguém dos cultos ligados à ayahuasca gosta de falar. Quando perguntei a Glauco sobre a Santa Maria Joana, ele desconversou. Pelo que li e ouvi sobre o tema, a Santa Maria parece ter tido um papel importante nos primórdios das religiões ayahuasqueiras, mas os maconheiros foram sendo cada vez mais marginalizados à medida que os cultos caminhavam na direção da respeitabilidade e da aprovação pelo Conselho Nacional Antidrogas.
Não sei se por causa da influência ou não da Santa Maria, minha experiência com o Daime naquela noite foi bem diferente das anteriores. De volta à tenda, já havia tomado a segunda dose do chá quando percebi que a minha mente ia me levando para algum lugar. Beleza, pensei. Vamos lá, enfim um pouco de ação. Me mostre o que você tem, Daime.
Bang! No segundo seguinte, todas as minhas ironias e descrenças jaziam despedaçadas pelo chão.
Não tive alucinações. Pelo menos, não alucinações “visuais”. Ao contrário das mirações de alguns daimistas, que descrevem verdadeiros longa-metragens com enredos, situações e situações de dar inveja a James Cameron, minha viagem não foi de visões, mas de sensações e idéias. Era como se eu tivesse passado a vida até aquele momento numa realidade em duas dimensões e, de uma hora para outra, percebesse a existência de um mundo em 3D. Como se eu pressentisse a tal realidade oculta sob a pele do mundo. O acorrentado da caverna de Platão enxergando o mundo além das sombras. Neo despertando pela primeira vez fora da Matrix. Fiquei apavorado. Eu não queria tomar conhecimento de outras realidades. Enquanto bailava, passinho para lá, passinho para cá, minha mente gritava: para, para. Me lembrei de um poema do Álvaro de Campos, da sua reação quando se via diante da oportunidade de conhecer “a razão de haver tudo”: “Não, não, isso não! / Tudo menos saber o que é o Mistério! / Superfícies do Universo, ó Pálpebras Descidas, / Não vos ergai nunca! / O Olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!”.
Depois piorou. A tal miração me levou para dentro de mim. Eu percebia a minha personalidade como uma construção de Lego facilmente desmontável. E que foi se desmontando, seus pedaços se espalhando pelo universo desconhecido. Tive a noção de que poderia me reconstruir e voltar dali como uma pessoa totalmente diferente. Ok, pessoas que me odeiam, vocês vão dizer que perdi uma excelente oportunidade. Mas a verdade é que tudo o que mais prezo é a minha identidade, as minhas idéias bestas, minhas perversões e meu jeito tosco de ver o mundo, e eu não queria perder aquilo. Na minha cabeça, eu saía catando cada um dos pedacinhos que me faziam como era e tratava de me remontar exatamente igual ao que era antes.
Depois, veio a paz. Eu não me sentia drogado. Pelo contrário: parecia ser um momento de extrema lucidez, como se meu cérebro fosse um disco rígido com 128 MB de memória RAM que por algumas horas ganhasse um upgrade para 4 GB. Procurei usar essa expansão temporária para raciocinar sobre minha vidinha inútil e consegui extrair daí algumas idéias interessantes, que realmente me seriam úteis depois disso. Ao mesmo tempo, voltei deste mergulho com uma certeza: muito bom saber da existência de um mundo além dos sentidos, mas onde eu continuarei a viver de verdade é neste prosaico mundinho fedido onde trepo e respiro. O outro mundo que fique para outra vida, se houver.
“Entrei Dana Scully e saí Fox Mulder”, escrevi na minha matéria sobre a sessão, que no final das contas acabou nem sendo publicada (a própria revista fechou pouco tempo depois). Eu falava dos personagens de “Arquivo X”, que era uma espécie de “Lost” dos anos 90 (mais uma prova de que os anos 90 foram mesmo uma merda). Acho que a experiência no Céu de Maria me tornou menos cético, mas continuo ranheta. Outras realidades e outros seres, tudo bem, mas ainda não engulo a noção de um Deus. Não gosto de chefes e autoridades, por que gostaria de ver um Ditador Supremo, com cargo não apenas vitalício como eterno, comandando o universo até o fim dos tempos?
Mirações e revelações à parte, chegou uma hora em que comecei a achar a cerimônia insuportável. O padrinho Glauco era incansável: o sol já ia alto quando ele resolveu encerrar a cerimônia, após mais de 12 horas de bailado. Totalmente bodeado, eu só queria saber de me sentar na cadeira e dormir, mas toda hora um fardado me acordava para me obrigar a voltar ao bailado, pois se dormisse eu iria “perturbar as energias do grupo”. Eu não servia mesmo para aquilo: sou um individualista filho da puta e indisciplinado, não estava nem aí para as energias do grupo. É isso aí: o Daime não tem nada a ver com um bando de drogados que se reúne para curtir uma brisa. As pessoas levam aquilo a sério. É uma religião de verdade, tão boa ou ruim quanto qualquer outra.
E talvez até um pouco melhor do que a maioria. No único dia que passei no Céu de Maria, conversei com antigos meninos de rua que conseguiram se livrar do crack com a ajuda do próprio Glauco — e do Daime. Aquilo me impressionou. Eram caras espertos e bem falantes, nada a ver com os zumbis da Cracolândia. Não me pareceu de modo algum que trocar crack por Daime fosse apenas trocar uma droga por outra.
Não creio que o Daime seja para todos. Difícil saber o que uma miração possa provocar numa mente perturbada. Mas guardei uma boa lembrança do Céu de Maria e fiquei convencido de que Glauco realmente ajudava pessoas com o chá. Depois que ele e seu filho Raoni foram assassinados, tenho visto aqui e ali, em sites e programas de TV, algumas tentativas de responsabilizar o Daime pelo crime, transformando as vítimas em culpadas pelas próprias mortes. Cara, isso me emputece. Me deixa triste. Quando vejo isso, penso em Deus. Continuo a não acreditar nele. Mas, se o Grande Cara existe, onde quer que esteja, Ele é que já não deve estar mais acreditando em nós.
Fala para ele, Glauco. A gente não é tão ruim assim. Mostra aquela história do Geraldão. Ele vai rir. E talvez desista de nos detonar em um segundo Dilúvio.
FAUSTO SALVADORI
http://www.botecosujo.com/
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