sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Os feios e a Europa

Os feios e a Europa
Marcelo Carneiro da Cunha
Terra Magazine

"Now is the winter of our discontent", começa Ricardo III, em mais uma frase criada por Shakespeare para sacudir os nossos ossos. Com ela, o corcunda que deseja ser rei começa sua trajetória de maldades, já que ele descobriu que, se não é belo, inteligente, bem-amado, ele pode muito bem arrumar o que deseja sendo o vilão mais vilão de todos os tempos. Não foi o primeiro, não será o último.
 
Acontece que, em diferentes momentos nesse mundo vasto mundo, os feios descobrem que os mais belos não os incluem nos seus planos, talvez por preferirem outros igualmente belos ou mais bem cheirosos. Aos mais feios resta a escolha de irem para um canto, agradecendo aos deuses pela invenção da Caras e da chance de ao menos olhar os bonitos enquanto eles enxugam Chandon nos seus castelos, ou, partir para cima e mostrar que a feiúra tem lá o seu charme, ainda mais quando armada de um bom e velho porrete.
Exemplo de feiúra
Na França medieval, de tempos em tempos acontecia uma jacquerie, uma revolução dos "jacques", os pobres a sofridos camponeses que produziam toda a riqueza que havia, e da qual viam tão pouco. Cuidar do que não comiam era a sina dos jacques, que por vezes cansavam dessa ordem ordenada por Deus e, descobrindo a força dos seus números, acabavam com os nobres e clérigos mais próximos e se esbaldavam por um tempo com o pão e o vinho dos castelos tomados. Na sequência inevitável, o rei reunia seus soldados, ia até os camponeses rebelados, ouvia seus choros justos, prometia mundos e fundos, e enforcava a todos, assim que baixavam as armas.
 
Até a Revolução Francesa, esse foi o destino de todas as jacqueries, que somente tiveram o script mudado porque em 1789 havia um cansaço com a idéia da divindade dos reis, e uma burguesia disposta a dizer aos jacques o que fazer com o machado.

A lição que a história dá é que rebeldia sem causa, ou sem clareza dos meios com os quais atingir os fins; são ondas que batem na areia e se desfazem, deixando apenas espuma pelo caminho. E nesse agosto, enquanto sírios morrem na grande luta contra uma ditadura insuportável, os pobres das cidades européias batem cabeça nessa jacquerie pós-industrial que estamos assistindo.
 
A Europa trouxe muita gente da periferia para habitar a sua periferia. São imigrantes das ex-colônias, no caso de Inglaterra e França, são imigrantes turcos que vieram tocar as fábricas alemãs, no boom industrial do pós-guerra, e que descobriram que morar na Europa rica era muito melhor do que morar nos seus países de origem. Mas descobriram também que não seriam convidados a participar da festa, basicamente, por serem feios. A religião é um problema, os hábitos de vestuário, sua mania de se protegerem em guetos, simplesmente por não serem aceitos fora deles, incompreensível. A Europa se descobriu cheia de pessoas que ela não entende e para as quais não tem um lugar definido. Assim, como tudo que não tem lugar claro aqui na minha luxuosa ex-laje, eles terminam no quartinho dos fundos, empilhados temporariamente, o que quer dizer, acho, pra sempre.

Em um país das Américas, essas pessoas seriam absorvidas e virariam cidadãs, mesmo que pobres. Na branca e européia Europa essa alternativa simplesmente não está lá. Não existe a sociedade multirracial na qual todos podem ser parte igual. Ao se olharem no espelho eles são o outro, sempre. Eu vi jovens de origem turca em Berlim rindo de si mesmos com a tristeza irônica que vocês podem imaginar, dizendo para mim que eram "terroristas. Os pobres da periferia européia não são apenas pobres, mas párias. E se a Europa deixou de ter um sonho de futuro para os seus meninos brancos e europeus - um em cada dois jovens é um desempregado na Espanha -, imaginem para esses aí, o que sobra?

O Brasil vive o seu sonho, e não pensa muito sobre como é viver sem um. Nós temos que transpor o São Francisco, parar o desastre na Amazônia, extrair petróleo do pré-sal; produzir alimento pro mundo, ensinar motoristas a se comportar diante de uma faixa de segurança; temos que integrar milhões de brasileiros a uma vida mais normal, reduzir nosso ridículo analfabetismo e fazer uma lavagem cerebral nos Malafaia e Bolsonaro que nos afligem. Temos sonhos e trabalho para um século, pelo menos, e isso vai nos manter ocupados e longe da depressão social que os europeus vivem.
 
Talvez a gente até possa, na nossa capacidade tupinambá de especialistas em antropofagia, receber aqui todos esses Ricardos III que a Europa diz não querer. Quem sabe aqui eles se alimentam do nosso sonho e nos ajudam com sua energia a irmos ainda mais longe, agora com o cheiro de curry no ar?
 
Agosto é o mês das inquietudes, dizem. O desejo dos europeus de sacrificar sonhos por um conforto inalcançável deu nisso. Que a gente permaneça na nossa inquietude e no nosso modelo de descontentamento. Que alguém descubra como fazer o real parar de querer ser dólar. Que o Mano Menezes descubra o que fazer com o nosso talento desmiolado, ou saia de cena. Que a Dilma siga moendo a pancada os que achavam que estariam lá para sempre e estaremos bem, é o que eu acho, quando setembro vier.

* Na semana que vem dou dar um pulo até a Europa, visitar meus castelos, e olhar para a situação e fazer relato dela aos meus estimados leitores. Até lá, se segurem.
 
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.