sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Um sampler, mil cidades, 40 graus

 

A verve de Fausto Fawcett tornou-se conhecida nacionalmente em 1987, com o estouro de Kátia Flávia, a Godiva de Irajá, possivelmente o primeiro rap a fazer sucesso radiofônico no Brasil. Então, em 1992, Fernanda Abreu o levou de volta às rádios em seu segundo álbum solo, Sla II be sample, com Rio 40 graus, dela, de Fausto e Carlos Laufer.
Sla II be sample, sem chegar a ser um álbum conceitual, ainda assim é construído sobre um conceito, derivado do uso de um instrumento novo à época: o sampler. Hoje é possível fazer tudo o que um sampler fazia há 20 anos e muito mais, com praticamente qualquer computador. Á época, no entanto, a possibilidade de tomar um trecho de uma gravação, isolar determinado instrumento, criar loopings ou inserir trechos em outras gravações, abriam um mundo de possibilidades sonoras. Sla II explora este universo, mas sua grande sacada é extrapolar estas possibilidades da música para outros terrenos: samplear linguagem, samplear conceitos. E Rio 40 Graus é o ponto máximo desta exploração. Fala Fausto Fawcett no release do álbum:
No primeiro disco, (Sla Radical Dance Disco Club) o sampler teve um papel importantíssimo na confecção do clima das músicas. No segundo, virou vedete total, apêndice constante de todas as guitarras, baixos, concepções rítmicas, etc. O sampler é um gravador-sintetizador, que captura, acumula e serve para distorcer, deslocar qualquer pedaço de som ou de música, além de permitir a criação de músicas calcadas em sequências de fragmentação.
Máquina de reinventar, remanejar, recriar sons. Máquina que permite a criação de músicas a partir de outras músicas. Também pode transformar fragmentos sonoros e musicais em fantasmas sonoplásticos rasantes, interferindo em outras músicas. O homem é sampler orgânico. O cérebro é sampler-víscera-mor. More sampler. O corpo é sampler? É divertido imaginar as pessoas como máquinas de vísceras inquietações estimuladas por influências de promíscuas inter-relações com as substâncias do mundo. Máquinas de vísceras, inquietações de nervos transpassados por magnetismos provocados por eletricidade provocada pelo sangue provocado pelos sensores provocados por impressões exteriores e subjetivas manifestações, provocando vísceras inquietações… Os homens são máquinas que inventam outras máquinas, próteses, instrumentos que são extensões, exteriorizações, materializações de processos orgânicos, mentais, corporais que ampliam sua capacidade de influenciar o mundo. Cada máquina é uma espécie de espelho onde os humanos observam o funcionamento, a caricatura mecânica e cibermética de seus processos orgânicos. Máquinas são alívios. O sampler, assim como outras máquinas, é a caricatura cibernética do processo cerebral-metal. Milhões de fragmentos da realidade entram incessantemente no cérebro como curto-circuito de estalos eletromagnéticos de percepção que se chocam, gerando combinações e recombinações de realidade transmutada. A realidade dentro do cérebro vira veloz labirinto de mosaicos mutantes. O mundo, enquanto quintal da atividade humana, é um labirinto de mosaicos mutantes. O sampler pega todas as formas de vida musical e sonora e nos permite criar labirínticos mosaicos de sonoridades mutantes.
Antes mesmo do sampler mental de Fausto Fawcett disparar sua metralhadora musical, uma sequência de canções dentro da canção não se limita a criar uma ambiência ou a servir de introdução, mas já inicia uma construção de intertextualidades intrometendo-se em meio às estrofes: no repertório dos Novos Baianos (a introdução de Com qualquer dois mil réis), Clementina de Jesus (Pergunte ao João), Giberto Gil (introdução deExpresso 2222, Aquele Abraço) Caetano (Soy loco por ti América), Moreira da Silva (Na subida do Morro), vão sucedendo retratos de ser carioca que dialogam com a canção propriamente dita, sendo vários deles curiosamente feitos por baianos – volto a este ponto adiante.
Mas é na letra de Rio 40 graus, em sua poética, sua sintaxe, mixagem lingúistica na emenda desenfreada de palavras que embaralham conceitos, que a estética do sampler vai se mostrar mais profícua. Metralhadora musical. Letra que já se anuncia dando o mote para o que virá: O Rio é uma cidade de cidades misturadas – incluindo a beleza e o caos, cuja indistinção será explorada ao longo de toda a música. O próprio título da canção é sampleado do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos. A partir daí, duas técnicas de estruturação de texto são usadas, no fundo sendo a segunda uma radicalização da primeira:
1- Substituição – o verso Comando de comando submundo vai sendo terminado por palavras diferentes a cada vez, criando um efeito ao mesmo tempo hipnótico pela repetição e de estranhamento pelo desenvolvimento, estendendo a noção de submundo da bandidagem aos filhinhos. A mesma técnica e usada duas vezes mais adiante, completando o verso cachorrada doentia com diversos nomes de bairros cariocas, mas agora com efeito diverso, similar à lista de bairros de Kátia Flávia, incluindo bairros de diversas partes da cidade, e na marcação invocação pra gritaria de torcida da galeracom terminações samba, funk e tiroteio, temas e rítmos que separam e unem a cidade. Cidade retratada por inteiro, em todos os seus submundos, submáfias, subcidades;
2- Fusão – naquilo que é o clímax da canção, a mixagem entre dois temas – equipamento musical e armamento – vem num galope alucinado em que adjetivos de um são usados no outro, tornados indistintos, confundindo e equiparando as duas coisas. A batucada metralha, a sub-usi tem cartucho musical. A identificação absoluta entre estética e ética, entre representação e realidade. A problematização desta indistinção entre dois universos, que levaram, por exemplo, o funk a ser criminalizado e o crime a ser glamurizado por muito tempo, está no cerne da crônica carioca de Fausto.
A substituição contínua e a fusão de diferentes: Rio 40 graus isto ocorre concomitantemente em termos sonoros, linguísticos e conceituais. A velocidade estonteante da recitação da letra verborrágica tem um efeito hipnótico e anestesiante que leva à a uma invertida e irônica celebração de uma purgação: purgatório da beleza e do caos. Fausto e Fernanda fazem um desvelamento parcial, mas recusam-se a uma simplificação. Independente disto, o diagnóstico é preciso e extremamente atual:
O Rio é uma cidade
De cidades camufladas
Com governos misturados
Camuflados, paralelos
Sorrateiros
Ocultando comandos…
Numa época em que, não apenas no Rio de Janeiro, organizações criminosas se formam a partir de instituições e se infiltram em instituições (o Filme Tropa de Elite IIretrata exatamente as milícias se originando do seio da polícia e estendendo tentáculos na política – e o atual prefeito é justamente acusado de conivência tanto com milícias quanto com empreiteiras e de subornar outros partidos, o que leva o blog a declarar voto para prefeito no dia 7 de outubro em Marcelo Freixo, retratado no filme), estes versos soam como se tivessem sido compostos ontem.
Mas outros versos, ainda que de forma mais geral, talvez vão até mais fundo na questão:
Quem é dono desse bêco?
Quem é dono dessa rua?
De quem é esse edifício?
De quem é esse lugar?
É meu esse lugar / Sou carioca
Eu quero meu crachá!
Sou carioca, pô!
A praça é do povo como o céu é do condor, cantava Castro Alves. Em tempos que também são de ocupação de praças e ruas, da Praça Tahir a Wall Street, a lembrança de que a cidade pertence a seus habitantes é de uma obviedade que se oculta a cada dia. Alguns anos depois, Fernanda Abreu regravou Rio 40 graus com Chico Science e Nação Zumbi.
O estranhamento de ouvir o pernambucano Chico Science, ligado umbilicalmente à capital de Pernambuco, transplantar a batucada Mangue Beat para o rap de Fernanda, ex-integrante do mais carioca dos conjuntos de rock, a Blitz, e exclamar convictamente:sou carioca! logo é sucedido pela constatação da frase um dia dita por João Gilberto: O Rio é a cidade de todos os brasileiros. Caetano Veloso conta de amigos de Santo Amaro da Purificação, em sua infância, que pelos jornais, rádio e TV, novelas e canções conheciam o Rio de Janeiro tão bem como os arredores de suas casas, sem nunca terem pisado lá. O Rio de Janeiro assume na poesia de Fausto Fawcett um cosmopolitismo que não deixa de ser extremamente brasileiro. Não à toa os Gil, Caetano e Novos baianos, radicados no Rio, tem suas canções sampleadas, muitas delas louvando explicitamente o Rio, a carioquice, um jeito de fruir a cidade, de vivenciá-la. Microcosmo do país, Capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil, o Rio aponta direções possíveis, espelha mazelas, às vezes é vanguarda, às vezes se perde em suas contradições.
No fundo, Rio 40 graus é simplesmente uma canção de amor, amor carinhoso e bandido, dos que dão dor e prazer ao mesmo tempo. Fausto afirma ser um pessimista festivo. Mas esta também é uma canção de quem acredita que deste mato sai coelho, que deste amálgama, desta maravilha mutante de samplers de influências do Brasil e do mundo pode sair algo original, inesperado, algo de bom, que pode vir a iluminar de volta o Brasil e o mundo. Como já fez e faz cotidianamente, aliás, sem que nos demos conta, e é isto que Rio 40 graus vem também apontar. Uma canção de amor apaixonado e doentio, para o bem e para o mal. Na saúde e na doença. Na beleza e no caos.