sábado, 20 de outubro de 2012

Jorge Ben Jor - Parte 3/5

Jorge Ben Jor - Parte 5/5 (Final)

Jorge Ben Jor - Parte 2/5

Três Charles

Ouvindo o sensacional documentário sonoro Imbatível ao extremo, entre muitas descobertas, me dei conta de uma trilogia de canções entre os álbuns de 1969 e 1970, gravados ambos com o incrível Trio Mocotó. Uma pequena e algo imprecisa saga em três capítulos, no entanto incrivelmente coerentes entre si, e um excelente exemplo entre tantos da capacidade de Benjor de sintetizar complexidades na simplicidade aparente de seu estilo muito particular.
Take it easy, my brother Charles, do álbum de 69, é um despretensioso apaziguamento. Nenhuma história é contada, mas subentendida: Charles, irmão de cor de Jorge, está prestes a se descontrolar. Jorge, para acalmá-lo, faz um libelo à paz, à sugestão, à simpatia. Ouvida distraidamente, a letra não parece fazer mais sentido do que isto, com sua inesperada menção à chegada do homem à Lua no meio. Ainda assim, sua levada empolgante, entre o soul e o samba, tem algo a dizer. O soul, gênero musical associado à luta pelos direitos dos negros, misturado ao ritmo negro brasileiro por excelência, embalando a expressão irmão de cor, tudo isso já dá pistas sobre o que Jorge está falando. Mas as pistas se materializam ao ouvir a canção que fecha o álbum:
Charles Anjo 45 conta toda a história que Take it easy não conta. A história do dono do morro, temporariamente preso mas idolatrado e esperado ansiosamente de volta (Antes de acabar as férias nosso Charles vai voltar – ele se refere às férias forçadas citadas antes. Charles vai fugir), nos remete a um período de romantização da marginalidade (Seja marginal, seja herói, dizia Hélio Oiticica) que ficou para trás em tempos de UPP. Mas o discurso de Jorge é mais sutil, pois, embora cantada numa discreta primeira pessoa, em especial o refrão, o corpo da letra de Charles anjo 45 oscila entre a persona do próprio Jorge e a de outra pessoa, um personagem, um morador do morro. O discurso de Jorge transita entre o endosso a Charles e a postura de um expectador mais ou menos neutro.
Ouvida retrospectivamente depois de Charles anjo 45, Take it easy my brother Charlesganha desdobramentos de tensão. O aborrecimento de Charles, em uma situação não explicitada, pode resultar em violência, mesmo em morte. A canção solar esconde em si possibilidades tenebrosas. O soul também era o som dos mafiosos, de gangsters, dos que flertavam com a marginalidade. Mas o samba rasgado Charles anjo 45 não tem necessidade de repetir o paralelo já traçado sua letra sem rodeios exige uma ambientação também direta. A passagem do soul para o samba ocorre como Jorge assimila o black is beautiful em Negro é lindo, como lembra bem Fred Coelho no documentário da Rádio Batuta.
Jorge interpreta o Anjo 45 em sua sintaxe característica, entre cantada e falada mesmo quando melismática, quase sem destacar pontos específicos da letra, como um bate-papo de boteco, numa aproximação com o ouvinte. A sempre interessante melodia de Jorge avança movida pela inflexão da fala, num voo de mosca varejeira que parece não ter direção mas tem alvo certo. Jorge quase não a usa para destacar pontos específicos ou dramatizar passagens, seu interesse é fazer a crônica do morro. Já Caetano Veloso teve uma leitura diferente.
Caetano, ao contrário de Jorge, trata de sublinhar cuidadosamente em sua interpretação a melodia da canção, inclusive diminuindo muito seu andamento. Ao fazer isso, tira dela o caráter naturalista e explicita o distanciamento em relação aos acontecimentos, situando-se numa falsa e algo irônica primeira pessoa. Tudo isso que aumenta a dramaticidade da música. Já a gravação de Ben cria esta dramaticidade pelo avesso, ao acelerar brusca e tremendamente o andamento depois do fim da letra. Aí torna-se visível uma tensão que era latente em todo o discurso anterior, em quesaraivadas de balas pro ar são uma celebração.
Então, no álbum seguinte de Jorge, Força Bruta, um novo personagem entrou em cena.
Assim como Charles anjo 45 ressignifica retrospectivamente Take it easy, Charles Jr., ressignifica novamente as duas canções precedentes. Outra vez cantada na primeira pessoa, ela assume uma terceira forma: nem o aparente livre improviso da primeira, nem a história encadeada da segunda, desta vez o que temos é um discurso articulado, uma dissertação, um manifesto. E outra vez a persona de Jorge transita pelo personagem, mas agora de forma diversa: não há o distanciamento. Jorge agora chega efetivamente a ser Charles Jr., toma integralmente para si seu discurso.
Charles Jr., por óbvio, é filho do Anjo 45. Filho da marginalidade, filho da violência. (E a relação do uso do inglês Junior também faz paralelo com o take it easy, e por extensão com o universo do soul da primeira canção, com todos os seus desdobramentos.) Mas o que era um dado objetivo agora é estendido e entendido: Pois eu nasci de um ventre livre / Nasci de um ventre livre no século XX. A herança da escravidão que levou Charles, o irmão de cor, à marginalidade, agora é convertida em uma afirmação de liberdade. A marginalidade foi o estranho, enviesado e possível meio de ser livre, e que ainda assim o levou à prisão. Não há nem sombra da glorificação deste caminho, apenas a constatação. Charles Jr. não se identifica com a marginalidade, mas também não se desvenciha dela. Pois eu já não sou não não o que foram os meus irmãos, masEu também sou um anjo: A identificação com o pai, que vem desde o nome, não implica em seguir seus passos, mas em abrir um novo caminho, como ele abriu. Seja marginal, seja livre. Seja um anjo, seja herói.
As três canções tem a mesmíssima estrutura: refrão curto e grosso que ecoa durante toda a letra, esta conversada sobre uma sequencia de 3 ou 4 acordes, não mais, e novamente o refrão, agora como uma reafirmação implícita de tudo o que foi dito e contado. Um apaziguamento, um festejo, uma reivindicação, um crescendo de tensão, cuja culminância é expressa no andamento mais lento, quase andante, e destacada no arranjo de cordas de Charles Jr. Onde o intermezzo, ao contrário da feroz batucada anterior, é de um violão solo, conseguindo expressividade análoga pelo caminho inverso.
Mas o que talvez seja ponto de ligação mais interessante entre estas três canções é a volta sutil, na terceira delas, da menção que soava tão arbitrária na primeira, da chegada do homem à Lua. Se em Take it easy ele cantava
Depois que o primeiro homem
Maravilhosamente pisou na lua
Eu me senti com direitos, com princípios
E dignidade
De me libertar
Agora ele explica e desenvolve:
Eu tenho fé e o amor e a fé
No século vinte e um
Onde as conquistas científicas espaciais medicinais
E a confraternização dos povos vai vai
E a humildade de um rei
Serão as armas da vitória
Para a paz universal
Mas há uma diferença fundamental entre estas duas passagens: se na primeira as conquistas científicas espaciais davam vazão à luta por uma liberdade pessoal, Charles Jr. já almeja bem mais alto e mais amplo. O pensamento de Jorge Ben ao longo destas três canções traça uma trajetória de refinamento. Seu sonho não é mais individual, e sim coletivo. O apaziguamento de Charles, personagem real, companheiro de peladas da infância de Jorge Ben, dá lugar ao da humanidade, por um mundo em que o caminho da libertação de Charles, e suas armas da vitória não precisem ser um revolver calibre 45. Charles Jr. é um passo civilizatório adiante, um passo utópico, na direção de um mundo em que o lado escuro de Take it easy não seja necessário, em que a vida do Anjo 45não seja em vão.