quarta-feira, 18 de janeiro de 2012




Do blog Nossa Canção

Negão, neguinha, neguinho
Eu sou negão nem se chamava assim. O título era Macuxi, muita onda, e foi assim, com o título que a consagraria apenas entre parêntesis, que saiu no álbum gravado às pressas para dar vazão ao tremendo sucesso radiofônico . O Produtor musical Paquito conta a incrível história:
Eu sou negão não é bem uma canção, é também uma canção e peça curta falada, com um diálogo entre as duas forças do carnaval baiano: o trio elétrico, representado por seu cantor, e o bloco-afro, representado pelo negão propriamente dito, cantor do bloco, que toma a palavra e entoa o refrão poderoso:
Eu sou negão / Meu coração é a Liberdade
Disso todo mundo sabe, mas a canção nasceu em uma convenção da gravadora Sony no Hotel Quatro Rodas, em Salvador. Gerônimo ficou de apresentar um show para os executivos da gravadora, mas sentiu-se desdenhado no palco, diante da platéia indiferente, e danou a improvisar na hora, por cerca de sete minutos.
O então disc-jóquei da Rádio Itaparica, Baby Santiago, presente no local, gravou a música ali mesmo, no instante da execução, e botou pra tocar na programação da rádio. Verão de 86, a música fez sucesso instantâneo. A Itaparica, que era sétimo lugar em audiência, passou pra segundo, e Gerônimo não tinha nem disco, que contivesse a faixa, pra vender. Foi feita uma segunda gravação, mais curta, no estúdio de Silvio Ricarti, pra entrar num disco de apenas três faixas, e resto, como diz o clichê, é história.
Eu sou Negão – clip original (falta um pedaço no início, mas vale a pena ver)

 
Ouvindo Eu sou negão, percebe-se claramente que há duas músicas ali. Dentro de uma, o reggae que era a música original, surgiu uma outra coisa a partir dos improvisos de Gerônimo – uma espécie de enfrentamento entre as duas vertentes do carnaval baiano, mas mais que isso, uma discussão sobre a autenticidade de uma cultura negra e seus desdobramentos. Eu sou negão é sobretudo uma canção para ser assistida ao vivo. Eu só a vi assim uma vez, num programa de TV à época, e fiquei maravilhado quando, na mudança de ritmo da entrada do trio elétrico, Gerônimo e vários músicos começaram a pular e se empurrar no palco, pulando carnaval, teatralizando completamente a apresentação.
Eu sou negão – ao vivo (não há a teatralização, mas é uma versão mais madura, com um texto de improviso completamente diferente e interessantíssimo de Gerônimo)

 
Eu sou negão inspirou Eu sou neguinha, de Caetano, a partir de uma foto – enviada por Arto Lindsay a Caetano – que mostrava um Prince andrógino com a frase, escrita por Arto: “eu sou neguinha?”.
Eu sou neguinha? (Caetano Veloso com a Banda Cê)
Eu sou neguinha desloca e ao mesmo tempo amplia o raio de ação de Eu sou negão. Até geograficamente: se a primeira dá endereço certo (Pega a Rua Chile, desce a ladeira, tá na Praça Castro Alves, na Praça da Sé), Caetano tava em Madureira, tava na Bahia, no Beaubourg no Bronx, no Brás. A levada da gravação de estúdio de Caetano também passa ao largo de ritmos chamados baianos, e se presta a esta revisão na fase rocker atual. Para além da questão óbvia da sexualidade, a música de Prince, na época qualificada como fusion, misturava rock, funk, jazz (ele chegou a fazer sessões com Miles Davis) e era por si uma nova afirmação da cultura negra, acompanhada de um questionamento de suas verdadeiras fronteiras. Caetano sabia disso. No aniversário de Roberto Carlos aquele ano, o jornal O Globo fez uma enquete engraçadinha perguntando a vários músicos que presente dariam para o Rei. Caetano ofereceu o álbum Sign o’ the times, de Prince.
A pergunta de Caetano, que se definiria pouco tempo depois mulato na canção Branquinha, corresponde à admissão de Gerônimo no discurso da gravação ao vivo acima de não ser negão, e sim mulato, relativizando assim a tomada de posição em favor de um dos personagens de sua canção (pois o refrão, cantado pelo personagem/cantor do bloco afro, o sobrepõe ao trio elétrico decisivamente). Quem é negunha agora, quem é negão, nesta cultura miscigenada?
E então, em 2011, no álbum Recanto, só de canções de Caetano, Gal Costa gravou Neguinho.

Neguinho se encaixa numa tradição pessoal do Caetano da música-discurso civilizatório (Podres Poderes, Fora de Ordem, Vamo Comê), passando inclusive pelo seu assunto eterno retorno do ultrapasar o sinal vermelho (como também em Haiti e Neide Candolina). Neguinho é como que o lado escuro de Eu sou neguinha, com sua crítica feroz e sua melodia quase monocórdica. Mas de resto, todas as três canções são eminentemente discursivas – no caso de Eu sou Negão, quase à força… e no entanto, esta é a que acaba tendo mais variação pela interpretação falada, cheia de nuances, enquanto nas duas de Caetano, a melodia transita entre duas a três notas de cada vez. Aliás, o motivo melódico inicial das duas é muito parecido. E em todas, os refrões fortes, titulares, curtos e repetitivos contrastando com as estrofes, indo do grito de guerra à pergunta, e desta a um irônico hey, hey, que pode ser ouvido também (e mais ironicamente ainda) rei, rei.
Neguinho, partindo em sua construção da acepção de gíria da palavra, como um pronome indefinido, parte também para uma informalidade absoluta de linguagem, em frases como neguinho também se acha. Se as três canções primam pela sintaxe absolutamente coloquial, Eu sou negão e Neguinho, propositalmente, extrapolam para um universo linguístico muito popular, porém por motivos e com resultados diversos: enquanto a primeira provoca uma identificação pela teatralidade da personificação, a segunda causa um certo estranhamento, tanto pela interpretação sem nenhum entusiasmo de Gal Costa quanto pelo sóbrio arranjo eletrônico que sugere um universo bem diferente. Mas Caetano se apropria do código desta linguagem tida como inculta para traçar o retrato crítico de uma sociedade contraditória:
Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho
Mas o essencial nesta canção é exatamente o título/refrão. Caetano afirma adorar o uso da palavra neguinho em substituição à expressão todo mundo. E explicita a quem se refere no verso neguinho que eu falo é nós. É quando é feita a passagem da discussão de uma cultura para toda a sociedade, como herdeira desta cultura. Se em Eu sou neguinha Caetano se constitúi como o lugar desta mistura, no último verso parece já dar a deixa para a generalização que faria mais tarde:
E que o mesmo signo que eu tenho ler e ser
É apenas um possível ou impossível em mim em mim em mil em mil em mil
A passagem do em mim para o em mil completa a passagem da cultura negra para a cultura popular, das nações africanas para a nação brasileira, com todas as suas misturas e contradições (já tratei disso aqui recentemente, analisando Nação, de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio). Não é à toa que do samba-reggae passa-se pelo rock e chega-se à música eletrônica (mas sempre com ritmos meio híbridos, utilizados para fazer algo que de alguma forma extrapola os estilos). Gerônimo, na versão ao vivo acima, já havia avisado:
A cultura negra fez com que o mundo descobrisse o rock’n roll, o jazz, o reggae, a música popular brasileira, se não tivese o tempero da raça negra, ai de nós, o que seria de mim.
O que seria de neguinho.







Pessoal, foram garimpadas na internet por mim, cabritolunatico