terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Henry Miller

O Sexo Como Factor de Génio

O facto de o sexo desempenhar um maior ou menor papel na vida de alguém parece relativamente irrelevante. Algumas das maiores realizações de que temos notícia foram empreendidas por indivíduos cuja vida sexual foi reduzida ou nula. Em contrapartida, sabemos pela biografia de certos artistas - figuras de primeira grandeza - que as suas obras imponentes nunca teriam sido realizadas se eles não tivessem vivido mergulhados em sexo. No caso de alguns poucos, os períodos de criatividade excepcional coincidiram com períodos de extrema licença sexual. Nem a abstinência nem a licença explicam seja o que for.
No campo do sexo como noutros campos, costumamos referir-nos a uma norma - mas a norma indica apenas o que é estatisticamente verdade para a grande massa dos homens e das mulheres. Aquilo que pode ser normal, razoável, salutar, para a grande maioria, não nos fornece um critério de comportamento no caso do indivíduo excepcional. O homem de génio, quer pela sua obra, quer pelo seu exemplo pessoal, parece estar sempre a proclamar a verdade segundo a qual cada um é a sua própria lei, e o caminho para a realização passa pelo reconhecimento e pela compreensão do facto de que todos somos únicos.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"













Se você não conseguir fazer com que as palavras trepem, não as masturbe.

domingo, 27 de janeiro de 2013

O poema constrói a sua própria realidade





Com as mãos enterradas no lado apócrifo dos pais
avançam


Levam os mananciais dos sonhos arcaicos
o sismo das palavras
as insígnias de um deus esquecido
como cavilhas
                          o sangue


No ângulo dos gestos descrevem o crime
das rosas
o tumulto dos nomes
na boca das viúvas


E pelas cicatrizes das máscaras abrem rastos
até onde o silêncio magnético
relincha
                           e se apruma



Peixes vermelhos.  O  anel do tanque.  um centro em  círculo. Relâmpagos.  
Furnas de segredos.  Por cima, as águias relincham. Cata-ventos –atirados
ao nó dos abismos. E um ribeiro enrola-se ao tronco das árvores. Segue
as pegadas dos rituais antigos. O céu cai a pique.



 Ó memória de barro!  por onde sobem os anjos negros.



As têmporas molhadas , circulando á volta das Lâmpadas. A roda dos hálitos
nocturnos.  Os propulsores da  rapariga  incendeiam a nova estátua,  dentro,
no espelho.   E em cada palavra a flauta vertebral renasce, vermelha, ao alto,
com penas ameríndias.

 

Ah! a barbatana do sangue. O animal. Exangue.

                                                   Por baixo , a flor : oculta. Febril.


O poema constrói a sua própria realidade
 
 

Saio do diário da composição.
Nu .
Com a carne pendurada nas trevas.
Movimento em redor.
Espaço do nada.


Tudo ficou no poema.
Cravado.
Um espigão
nas entranhas.
Ao lado,
o negro anjo.
Morto.


E o meu pensamento procura,
de novo,
o rumo de outras paragens,
a sua nitidez
nos espelhos alógenos.

Com as mãos enterradas no lado apócrifo dos pais
avançam

Levam os mananciais dos sonhos arcaicos
o sismo das palavras
as insígnias de um deus esquecido
como cavilhas
                          o sangue

No ângulo dos gestos descrevem o crime
das rosas
o tumulto dos nomes
na boca das viúvas

E pelas cicatrizes das máscaras abrem rastos
até onde o silêncio magnético
relincha
                           e se apruma

Peixes vermelhos.  O  anel do tanque.  um centro em  círculo. Relâmpagos.  
Furnas de segredos.  Por cima, as águias relincham. Cata-ventos –atirados
ao nó dos abismos. E um ribeiro enrola-se ao tronco das árvores. Segue
as pegadas dos rituais antigos. O céu cai a pique.

 Ó memória de barro!  por onde sobem os anjos negros.

As têmporas molhadas , circulando á volta das Lâmpadas. A roda dos hálitos
nocturnos.  Os propulsores da  rapariga  incendeiam a nova estátua,  dentro,
no espelho.   E em cada palavra a flauta vertebral renasce, vermelha, ao alto,
com penas ameríndias.

Ah! a barbatana do sangue. O animal. Exangue.
                                                   Por baixo , a flor : oculta. Febril.
O poema constrói a sua própria realidade


                          

 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Comentários sobre K. de Bernardo Kucinski


Por Maria Rita Kehl.

“Acendo a história, me apago em mim”; a citação de Mia Couto que abre o romance de Bernardo Kucinski ganha seu pleno sentido somente depois que o leitor chega à última página. “Apagar-se” na tentativa de acender uma história que nunca foi contada é uma imagem que sintetiza a epopéia do pai idoso à procura da filha desaparecida durante a ditadura militar brasileira. Mas é também a posição do próprio narrador: é possível que o estilo contido e preciso de Bernardo Kucisnki tenha sido construído à custa de um corajoso e calculado método de apagamento subjetivo.
Na medida em que avançava na leitura de K., aumentava em mim a impressão de que só assim, apagando-se, teria sido possível ao autor encontrar coragem para reconstituir o sofrimento do pai que procura em vão pela filha e se convence aos poucos de que nunca a reencontrará, nem terá direito a homenagear seus restos mortais. A contenção no estilo da narrativa, longe de aparentar frieza ou impessoalidade, coloca o leitor em permanente estado de alerta diante do campo minado do texto. Uma bomba de dor está para explodir no capítulo seguinte, no parágrafo seguinte, enquanto a brutalidade que a provocou se insinua, sistemática, a cada nova tentativa de K. encontrar notícias da filha e do genro desaparecidos.
É preciso coragem para conduzir a narrativa, e com ela, o leitor, pelos caminhos tenebrosos percorridos por quem procura notícias assim, a esmo, um pouco às cegas, sem saber em quem confiar, à mercê de armadilhas, chantagens, falsos informantes, delações. Caminhos que são eles próprios o avesso da vida. O avesso do que a vida deveria ser. Coragem para inventar o que mais se aproxima da verdade: a perspectiva subjetiva do inimigo. Pois a narrativa de K. reconstitui a voz do delator, do torturador, da amante do delegado e até daquele que se tornou símbolo do mal absoluto no Brasil da década de 1970: Sérgio Paranhos Fleury. É preciso apagar-se um pouco para conseguir dar voz a quem certamente disse coisas como essas: “É isso aí, Mineirinho, vamos espalhar boatos de onde os corpos estão. (…) a gente solta um, dá um tempo, depois solta outro. Vamos matar esses caras de canseira”. (p.76). “…agora é hora de limpar os arquivos, não deixar prova. (…) Entregar a moça, onde é que esses caras estão com a cabeça? Mesmo que eles estivessem vivos, como é que eu ia entregar, depois de tudo o que aconteceu? Não é para acabar com as provas? Pois nós acabamos.” (p.77)
Talvez por isso, K. só pudesse ter sido escrito quarenta anos depois do acontecido. No prefácio de A grande viagem, o escritor espanhol Jorge Semprún escreve que precisou de 16 anos até obter o distanciamento necessário para descrever sua passagem por um campo de concentração nazista. Kucisnki precisou de mais tempo que isso, porque foi muito além da introspecção necessária para reconstituir o passado em primeira pessoa. Transportou-se por escrito para a perspectiva do pai, cada vez mais desesperançado e mais envelhecido, cada vez mais obstinado em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para encontrar – o quê? Primeiro a filha; depois, notícias de sua morte; a seguir, pelo menos uma ossada que pudesse sepultar; no fim de tudo, o direito a uma matzeivá vazia no cemitério judaico onde apenas o nome se perpetuasse e evocasse a morte. Direito que também lhe foi negado pelo rabino, em nome da ortodoxia contida nos livros sagrados, assim como lhe foi negado pelo dono da pequena gráfica o direito de publicar um livrinho em memória da filha e do genro: “como o senhor se atreve a trazer material subversivo para a minha gráfica…?” (p.84). O pai se atreveu a isso e muito mais. O pai nem sabia de fato o quanto se atrevia. “O pai que procura pela filha desaparecida não tem medo de nada” (p….).
A enorme angústia do pai diante do desaparecimento da filha transforma-se aos poucos no desespero de não conseguir nem ao menos uma inscrição simbólica de sua existência. Esta virá na forma modesta de nome de rua em um loteamento na periferia do Rio de Janeiro, que um vereador de esquerda conseguiu batizar em homenagem aos desaparecidos políticos. Na volta da cerimônia, K. se espanta ao passar por uma avenida batizada com o nome do criador do DOI-CODI, General Milton Tavares de Souza, também imortalizado numa das pontes sobre a marginal Tietê,em São Paulo.  Estranhocostume dos brasileiros, pensa o velho, de “homenagear bandidos e torturadores e golpistas como se fossem verdadeiros benfeitores da humanidade” (p. 158).
O livro termina com uma crítica piedosa e elegante a respeito da intransigência da direção de certas organizações, na luta armada, que se recusaram a liberar seus militantes diante da obviedade da derrota e do massacre iminentes. Mas não é este o alvo principal do belo romance histórico de Bernardo Kucinski. Hoje, quando finalmente o Brasil anuncia a intenção de pelo menos investigar os responsáveis pelos crimes de Estado cometidos durante o regime militar (punir, como os argentinos, jamais!), K. deveria ser leitura obrigatória para todos os membros da nossa tímida Comissão da Verdade, criada com quatro décadas de atraso, no atual governo da ex-prisioneira política Dilma Roussef.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

"Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França, a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Eduardo Galeano























Uma mulher numa multidão de indignados: que corpo é esse?


Postado em: 16 jan 2013 às 1:21

O que parece pedir esse corpo de mulher? Amor como última estância da gratuidade, talvez. Do encontro não marcado, talvez. Amor que às vezes começa pelo olhar. Pela conversa dos sentidos, e se inscreve no corpo feminino e nele tece histórias. Amor para celebrar a vida erótica que passa pelo corpo. Amor vivido no corpo

Viviane C. Moreira, Amálgama

Uma cena, entre milhares, talvez tenha passado despercebida. Talvez não. Afinal, o que é mais uma cena num mundo esgotado de cenas? Uma cena mais num cotidiano de cenas reeditadas? Por que parar pra prestar atenção numa cena, digamos diferente, logo em dezembro? Um mês que perdeu sua noção de tempo. Que não dá tempo nem para si mesmo. Um mês que já foi dezembro. E não serve mais como referência no calendário para a gentileza – por falta de tempo. Quando dezembro chega, não dá mais tempo para pequenos gestos de delicadeza. Mas o que ainda faz a gente olhar para o que passou?

foto mulher seminua madrid
Uma mulher, numa multidão de indignados, usou seu próprio corpo como meio (instrumento) de manifestação política. Com que, no entanto, ela estaria indignada?

Talvez esse olhar para trás seja mais um item da lista de fim de ano. Talvez sim. Rever o que passou. O que o acaso nos trouxe, mas não percebemos. O que foi perdido por descuido ou por excesso de cuidado. Rever o que queríamos muito, mas não o alcançamos. O que não nos coube. O que nos coube, mas não nos demos conta disso. Por medo. Por covardia. Por babaquice. Algo que aconteceu conosco, com o outro, no mundo, na vida, para o melhor, para o pior. Acontecimentos. Singelos ou não. Uns nos tocam mais – por quê? Outros gravíssimos não nos dizem muito – por quê?
Talvez seja mesmo mais um item da lista de fim de ano olhar para trás. Rever e rever. A propósito, temos tempo pra isso? Tempo pra ver novamente com olhos generosos o que passou? Ainda temos tempo para a generosidade? Espaço? Corpo?
Circulou nas redes sociais, durante os protestos dos indignados nas ruas de Madri, fotos de uma manifestante, só de calcinha. Uma mulher, numa multidão de indignados, usou seu próprio corpo como meio (instrumento) de manifestação política. Com que, no entanto, ela estaria indignada? Houve quem estranhasse… No cartaz que a mulher trazia consigo estava escrito: Love Revolution. Mais estranhamento e também curiosidade, despertada pela própria imagem da mulher e do amor nessa cena recortada.
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Fotógrafos ao seu redor flagraram um espetáculo à parte: um corpo na multidão chamou atenção pela sua beleza e por algo mais, além da forma e para além da estética. O corpo que se desprendeu da massa de indignados trouxe um discurso que falava de amor. Mas por que o amor? Paz, liberdade, paixão também estavam escritos no cartaz. E por que esse corpo protestava por uma revolução do amor?
Não é comum um corpo de mulher na rua cuja nudez parece adormecida. Uma nudez sem os apelos eróticos com os quais estamos acostumados. Sem as caras e bocas da sedução forjada dos corpos que vendem mercadorias. Um corpo de mulher apenas. Um corpo despido, de verdade, na rua – teria sido este o espetáculo?
Um corpo sem a sensualidade fabricada com a qual identificamos hoje o corpo feminino. Um corpo cansado disso, talvez. Um corpo à espera, talvez. Um corpo destoante. Ingrato. Um corpo de mulher que pede amor, nessa altura? Mais do que isso, um corpo que protesta por uma revolução que comece por ele. Um corpo marginal?
Um corpo quase morto. Passivo? Feminino. Um corpo que talvez reivindique a gratuidade num mundo em que falta tempo e espaço para ela. Em um mundo quase exclusivo de mercadorias. De fetiches industrializados. Jean-Claude Guillebaud (autor de A tirania do prazer) disse certa vez que as conquistas na sexualidade, após a revolução sexual, foram apropriadas e recicladas pela sociedade do dinheiro que transformou o sexo em mercadoria. Em matéria de sexo, tudo é permitido e também pago, segundo Guillebaud.
De volta à imagem, o que parece pedir esse corpo de mulher? Amor como última estância da gratuidade, talvez. Do encontro não marcado, talvez. Amor que às vezes começa pelo olhar. Pela conversa dos sentidos, e se inscreve no corpo feminino e nele tece histórias. Amor para celebrar a vida erótica que passa pelo corpo. Amor vivido no corpo. Amor que cria camadas de narrativas no corpo da mulher. Amor que liberta. Amor que privatiza. Amor que recobre o corpo. Amor porque simplesmente se quer amar – por que não? É proibido? Por que esse corpo parece desejar o amor? E isso o torna enigmático?

Talvez seja mais um item da lista de fim de ano, olhar para trás e rever cenas inéditas.

Led Zeppelin - Stairway to Heaven Live (HD)

Mercedes Sosa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gal Co...