terça-feira, 3 de julho de 2012

Capoeira - Berimbau Falou

Capoeira - Berimbau Falou

O negro que sofria na senzala
Trabalhava na fazenda da feitor,
E um dia ele escutou um lamento
Era Zumbi dos palmares
Foi ele que quem libertou
Hoje falou...


Falou, falou da escravidao, falou,
falou, falou da opressao, falou,
falou, la nos tempos de Bimba, falou,
falou, hoje se escutou...


Berimbau ajudava os capoeiras
La no tempo la no tempo da opressao
Se escutava o toque de cavalaria
Quando a policia seguia berimbau ja me avisou
Hoje falou...


Falou, falou da escravidao, falou,
falou, falou da opressao, falou,
falou, la nos tempos de Bimba, falou,
falou, hoje se escutou...


Manuel foi o mestre respeitado
Criador da arte da regional,
Hoje em dia seu nome será lembrado,
Ja nao se esqueçeu do homen que a Capoeira falou...


Falou, falou da escravidao, falou,
falou, falou da opressao, falou,
falou, la nos tempos de Bimba, falou,
falou, hoje se escutou...


Historia que se narran do passado
Jogadores que se escutam ate hoje
E os cantos que me levam pelos tempos
Lembrando issos momentos onde o berimbau tocou
Falou...



Falou, falou da escravidao, falou,
falou, falou da opressao, falou,
falou, la nos tempos de Bimba, falou,
falou, hoje se escutou...

Berimbau, berimbau

Vinicius, poeta e diplomata da linha direta de Xangô; Baden Powell, violonista de Varre e Sai, criado em São Cristóvão, estudioso dos clássicos. Vinícius apresenta a Baden o LP Sambas de Roda e Candomblés da Bahia, que ganhara do maestro baiano Carlos Coqueijo. Vinícius se interessa pelo lado místico, pelas possibilidades poéticas destas manifestações. Baden se interessa pelas possibilidades harmônicas abertas por estes cantos. Trancaram-se na casa de Vinícius por quase três meses e vinte caixas de uísque (!) e saíram de lá com cerca de 25 canções. A certo ponto, compuseram uma a partir das audições do LP baiano. Chamou-se Berimbau, e abriu a porteira para uma série de outras, que Vinícius batizou de afro sambas. Baden conta, em carta de 1990:
Os afro-sambas foram feitos lá pelos idos de 1962 e gravados em 1965/1966. Em qualidade sonora – foi a pior naquele tempo; só existiam dois canais em hi-fi. Foi gravado num daqueles dias, em que caía um temporal histórico – o estúdio estava transbordando de água e chuva – cantávamos e tocávamos em cima de algumas caixas de cerveja e uísque que há muito já havíamos consumido – estamos todos com muita raça, mas também bastante bêbados. Poucos profissionais – até as namoradas, mulheres e amigos participaram da gravação.
Até Betty Faria, naquele tempo atriz e dançarina iniciante, participou da gravação – é dela o contracanto de Canto de Ossanha. E no entanto, os arranjos eram de Guerra Peixe, outro tremendo estudioso das manifestações musicais populares do Brasil. A fusão de instrumentos de candomblé com saxofones e o desabrochar de uma técnica violonística brasileiríssima e inédita, numa linha diferente da consagrada do choro, estipulada por Garoto, fizeram deste álbum e destas canções o marco que são.
Berimbau e Canto de Ossanha são para mim as duas canções emblemáticas, inaugurais da virada da música brasileira que foram os afro sambas. Uma por ter aberto a série, a outra por ter aberto o álbum, ambas cartões de visita do que estava por vir. Há inúmeras semelhanças entre elas, a começar pelas estruturais: estrofes construídas sobre amplitudes pequenas, com ênfase rítmica paradoxalmente chegada à fala, sobre poucos acordes (falo mais à frente disso), e de repente o agudo, o refrão contrastante de melodia aberta destensionando, definindo, afirmando (ainda que anunciando para breve o retorno da tensão).
Mas há mais, e aqui me arrisco a analisar mais a fundo o mergulho que Vinícius e Baden deram na confecção destas canções. Da parte de ambos, de formas diversas, não se trata aqui de fazer música à moda africana, seja lá o que fosse isso. Por assim dizer, sem abrir mão de suas características como compositores e músicos, ambos trouxeram para si, por assim dizer, uma forma de pensar diversa, e a introjetaram nas canções. Vamos um por vez:
Baden Powell nesta época estudava os cantos gregorianos com o maestro Moacir Santos. Ao ouvir os cantos africanos, encontrou paralelos entre eles no uso de escalas modais que permitiriam experiências composicionais. Berimbau tem apenas dois acordes em sua primeira parte, ré menor, acorde da tonalidade, e dó maior. Já no Canto de Ossanha, a substituição do acorde dominante gera uma sequência de acordes suspensos em sétima descendo em meios tons, formações harmônicas que nos induzem ao modalismo, ou seja, o uso de uma escala diversa das escalas maior ou menor, preponderantes na música ocidental, mas comuns na chamada música folclórica, como também nas diversas culturas não européias – africana inclusive.
Os dois acordes de Berimbau me lembram particularmente os dois acordes de So What, primeira faixa do álbum Kind of Blue, de Miles Davis, um divisor de águas no jazz exatamente pelo mergulho nestas tradições não ocidentais. E remete também, como estes, mais do que simplesmente a uma conformação musical diversa, também a um pensamento diverso – não apenas uma estética, mas uma ética diversa, que se reflete nas letras de Vinícius, e que é muito menos distante de nossa realidade do que podemos supor (aqui, artigo do filósofo Walter Gomide Junior, partindo de Hegel para falar das implicações de modalismo, tonalismo e atonalismo como sínteses de seus tempos).
O álbum Afro sambas poderia se chamar Amor e dor. Não consegui contar quantas vezes Vinícius rima, ou mesmo apenas associa os dois conceitos. Não que isto seja algo tão diverso de sua obra. No Samba da bênção, ele já avisa: pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, se não não se faz um samba não. Esta celebração da tristeza e da dor também é componente fundamental do samba. Mas nesta característica há uma ponte entre a poética de Vinícius e o samba, que é exacerbada nos Afro sambas, tornando-se, ao longo do álbum, como que um segundo conceito, que é trabalhado lado a lado com o do título, e associado a ele:
Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem / Triste no mar
(Canto de Iemanjá)

Hoje é tempo de amor / Hoje é tempo de dor, em mim
(Canto de Xangô)

Sou da linha de umbanda / Vou no babalaô
Para pedir pra ela voltar pra mim
Porque assim eu sei que vou morrer de dor
(Tristeza e Solidão)
Mas isto é pouco, pois a ideia do sofrimento como propulsor da arte nem de longe é exclusiva. Há algo mais claramente revelador de uma ética – um ethos, para ser mais exato – à parte da tradição da moral cristã/ocidental. Basta analisar as letras paralelas, quase complementares, de Berimbau e Canto de Ossanha.
Quem é homem de bem / Não trai
O amor que lhe quer / Seu bem
Quem diz muito que vai / Não vai
Assim como não vai / Não vem

O homem que diz “dou” / Não dá
Porque quem dá mesmo / Não diz
O homem que diz “vou” / Não vai
Porque quando foi / Já não quis
O homem que diz “sou” / Não é
Porque quem é mesmo “é” / Não sou
O homem que diz “tou” / Não tá
Porque ninguém tá / Quando quer
Em ambas as canções, o que se vê é a definição do que é um homem – um homem de bem. A hombridade consiste em não trair, fazer o que diz e não falar em vão (em Para além do bem de do mal, Nietzsche afirma: Falar muito de sí mesmo pode ser um jeito de esconder aquilo que realmente é. São valores de uma ética da honra que é alheia à celebração de alguns valores tipicamente cristãos como a mansidão e um amor sublimado e sacrificial, em prol de uma ética muito mais afirmativa e que eventualmente passa ao largo dos códigos de honestidade puritanos da religião européia.
Vale conhecer um mito yorubá, contado pelo historiador Reginaldo Prandi, que explica e motiva a afirmação se é canto de Ossanha não vá, que muito vai se arrepender:

Um rei decidiu casar a sua filha mais velha. Dá-la-ia em casamento ao pretendente que adivinhasse o nome de suas três filhas. Ossaim aceitou o desafio. À tarde, Ossaim saiu sorrateiro por trás do palácio. Subiu no pé de obi [nogueira] e se escondeu entre seus galhos. Quando as três princesinhas saíram para brincar, foram surpreendidas por um canto que vinha daquela árvore. Era o canto de pássaro irresistível, de um passarinho das matas de Ossaim. Mas o canto era de Ossaim, imitando o pássaro. O passarinho brincou com as três princesas e conseguiu saber o nome delas: Aio Delê, Omi Delê e Onã Iná, eram estes os nomes das filhas do rei. Sua esperteza havia dado certo. No dia seguinte Ossaim foi ao rei e declamou a ele o nome das princesas. Ossaim, então, casou-se com a mais velha. Sua esperteza havia dado certo. Ossaim desde então é identificado com o pássaro.
É proverbial a lábia de Ossanha, orixá das folhas e ervas medicinais e detentor do segredo das palavras que devem ser pronunciadas para provocar sua ação. Assim, o título Canto de Ossanha tem uma polissemia, não se refere tanto ao fato de ser um canto típico de umbanda ou candomblé para ossanha, mas sim uma canção sobre o canto de ossanha em si.
Desta forma, vislumbra-se implícita nos versos destas canções uma, digamos, afro ética expressa na letra de Vinícius, que soa paralela e se coaduna à visão composicional de Baden. Valores de uma moralidade não européia e que está entranhada na cultura nacional, em questões sociológicas que vão do jeitinho brasileiro tratado por Roberto Damatta até a chamada ética da bandidagem, código de honra entre criminosos em que a traição é considerada a grande falta – como nesta notícia tirada do sítio G1:
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), Luiz Flávio Borges D´Urso, repudiou as declarações do advogado Jeferson Badan, que, na noite anterior, falou à imprensa que “todo bandido tem ética” e “em todas as profissões têm ética”. As frases foram ditas pelo defensor para justificar o motivo pelo qual o seu cliente, que confessou participação no assassinato do estudante da USP, Felipe Ramos de Paiva, de 24 anos, não iria entregar o comparsa, que teria atirado na vítima.
Obviamente, a presença de elementos desta ética nos Afro sambas não significa absolutamente um endosso a estes fenômenos. Entretanto, os pressupostos éticos expressos aqui entram em choque com a moral tradicional, assim como a declaração do advogado gerou uma reação inevitável da OAB defensora obrigatória de valores absolutamente diversos. Há aqui um estranhamento entre visões de mundo diferentes, e o elemento que será responsável pelo amálgama entre estes, servindo de mediador entre dois mundos, é a figura do capoeira, marginalizado por muitas décadas, e que manda dizer que já chegou, chegou para lutar. Ele é responsável por fazer valer uma ética que não é o lado certo da vida errada, frase comum entre criminosos usada quase como uma justificativa, mas também não diz amém aos valores impostos pela sociedade muitas vezes preconceituosa. Para ele, o sofrimento e a dor são efetivamente valorizados, porque definem a constituição do sujeito. Apoderar-se desta dor e redirecioná-la de forma a construir uma identidade e lutar por esta constituição exige, literalmente, jogo de cintura. O que não falta nem no samba nem na capoeira.
Pol Briand, responsavel pela Associação de capoeira Palmares em Paris, afirma neste ótimo artigo
A visão europeia está profundamente marcada pelo maniqueismo através da integração por Santo Agostinho. Lembro do estranhamento de colegas franceses em encontrar a frase “mandingueiro cheio de malemolencia” usada em louvor a Mestre Bimba no disco de Acordeão (Bahia, LP, 1988). É que nas crenças francesas atuais, a figura do santo guerreiro é de todo apagada. A bravura não é mais considerada virtude na cidade moderna. Entretanto, os pais fundadores das Repúblicas, tanto americana como francesa, consideravam-na como única garantia da liberdade.
Foi atrás desta ética que Vinícius e Baden partiram. Muito mais do que meros exercícios de estilo (pois se o fossem não teriam sobrevivido e fundado quase uma escola de composição e violão como fizeram), os Afro sambas são efetivamente a realização, no dizer de Vinícius na contracapa do álbum, de um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. São as tradições, o pensar, o fazer de uma cultura diversa abrindo caminho – na trilha do que Pixinguinha já fizera, é bom lembrar – por dentro da canção brasileira. Seus frutos estão aí até hoje. Somos muito gratos.
Berimbau instrumental – Baden Powell

 
Berimbau

 
Canto de Ossanha – regravação de Baden Powell em 1990, com o Quarteto em Cy

 

berimbau - nossa alma canta