terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cavalgada com explosivo orgasmo


...mulheres ousadas e gostosas...quero assim...

Leonardo Boff

Pecado: essa madeira cheia de nós

Pecado é uma categoria da tradição judeu-cristã mediante a qual se procurou interpretar a dramaticidade da condição humana. A condição humana, em qualquer nível que a experienciemos, se constitui num drama, cheio de paradoxos. No sentido etimológico desta palavra, apresenta-se simultaneamente como sim-bólica e dia-bólica. Por um lado mostra tendências de amorização, de cooperação, de sinergia (momento simbólico; sim-bólico em grego significa o que une e congrega), por outro revela dimensões de exclusão, de ódio e de destruição (momento diabólico; em grego significa o que desune e desagrega). Ambas as dimensões convivem simultaneamente no mesmo sujeito humano. S. Paulo exprime esse paradoxo dizendo:”Não faço o bem que quero mas cometo o mal que não quero”(Aos Romanos 7, 19). Kant em l784 em sua “Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolítico” bem o expressou: o ser humano é “essa madeira tão nodosa que não permite se talhar dela vigas retas” (proposição VI). Outros pensadores asseveram algo semelhante: a situação humana é como uma balança desregulada, um relógio desajustado, uma torre de Pisa inclinada, um animal coxo e encurvado. Por que somos assim? Estas questões, reais e não imaginadas, pertencem à agenda de qualquer reflexão humana em todos os tempo e em todas as culturas.
Quando falamos de pecado nos referimos à interpretação que a reflexão judeu-cristã, consignada nas Escrituras do Primeiro e do Segundo Testamento, formulou de cara a esta dramática realidade.
Nossa exposição quer, suscitamente, apresentar as três principais metamorfoses que a idéia de pecado conheceu ao largo do tempo: o pecado numa mentalidade sacralizada, o pecado numa mentalidade secular e o pecado na perspectiva da cosmologia contemporânea.
1. Pecado como ruptura de uma aliança de amor.
A singularidade da concepção judeu-cristã reside no fato de haver trabalhado o drama humano à luz da experiência espiritual e religiosa. Essa experiência é antropológica pois o espiritual e religioso não são monopólio das religiões e das tradições espirituais, nem é expressão da falsa consciência e da patologia humana no afã de buscar segurança. Antes constitui uma dimensão do profundo humano, da subjetividade abissal e daquela capacidade de colocar questões radicais acerca do sentido da vida, da origem do universo, da nossa função no conjunto dos seres e de nossa esperança para além da vida. Espírito é aquele momento da consciência em que o ser humano se sente parte e parcela do todo, se revela capaz de ouvir a mensagem que vem da grandeur do universo, apto a identificar ordens e sentidos nos processos naturais e históricos e aberto a captar valores que transcendem o horizonte de seus interesses imediatos. Principalmente ele pode dialogar com a Realidade Suprema e estabelecer comunhão com ela. Todas as culturas e tradições da humanidade, desde a mais alta ancestralidade do ser humano, no estágio consciente do processo de hominização (pelo menos nos últimos cem mil anos) testemunham sua abertura espiritual e religiosa. Esses testemunhos não podem ser enganosos. Remetem a algo fundamental do ser humano.

A tradição bíblica tematizou esta dimensão. Ela se inscreve dentro da atmosfera do sagrado. E é neste código que lê a história e o drama humano. Deus é uma evidência existencial. É experimentado como um ser de relações. Cuida de sua criação e do ser humano. Debruça-se sobre suas chagas. Faz aliança com ele, aliança de amizade e de amor. Faz do ser humano aliado (parte da aliança) de sua obra na criação, pois ele foi criado criador. Esse Deus é invocado como Javé que significa “o Deus que está presente em sua caminhada”, ou como Pai e Mãe de bondade e misericórdia. A aliança entre Deus e os seres humanos encontra na aliança conjugal sua melhor representação. Assim como entre os esposos vigora amor e fidelidade, da mesma forma entre Deus e os seres humanos.
Pecado é a ruptura desta aliança de amor; é infidelidade do pacto de intimidade. Por isso uma das palavras mais carregadas de conturbação é a palavra hebraica Kâ-as que significa “enciumar-se”. Pela traição, Deus fica enciumado, pois o ser humano, no dizer do profeta Oséias, abandonou Deus e “correu atrás de outras amantes”(Os 2,l5; cf. Ex 20,5; Dt 5,3, Jó 24,19). Pecado, neste contexto, é uma relação negativa diante de Deus, ruptura de uma aliança de amor. Esse Deus quer nos amemos como irmãos e irmãs e que vivamos socialmente em justiça e paz. O Decálogo é chamado no Antigo Testamento de “Código da Aliança”. A aliança com Deus se estendia a uma aliança entre os seres humanos. A ruptura entre os seres humanos não configurava apenas uma injustiça, quer dizer uma falta moral e uma infração legal, mas um desrespeito para com Deus e a sua vontade. Portanto, era um pecado.
Em conclusão: no âmbito de uma experiência do Divino, personalizado e interiorizado, pecado é uma categoria religiosa mediante a qual se procura entender o mal humano pessoal e social. Esse mal humano faz mal a Deus, magoa-o, rompe um laço de amizade e de amor. O ser humano afirma seu eu absolutamente. Decide construir sua própria história sem Deus e sem referência ao propósito de Deus manifestado no outro, na comunidade e na criação. Na convicção da tradição judeu-cristã tal atitude representa a grande errância do ser humano, seu verdadeiro drama. Ele demanda libertação e redenção.
2. Pecado como infidelidade ao próprio projeto.
Como enteder o pecado numa cultura que coloca a experiência religiosa entre parêntesis e se define pela autonomia do ser humano, de sua razão e de seu projeto existencial? Sem referência a Deus pode-se falar ainda de pecado? É a questão da cultura da modernidade.

O que podemos dizer é o seguinte: o ser humano se define como um nó de relações, um centro de criação e uma sede de decisões. Ele é habitado por uma estrutura de desejo, desejo esse que, no seu termo, é ilimitado, pois não encontra, no âmbito dos objetos de sua experiência, nada que lhe seja realmente adequado. Ele se sente um projeto infinito e tropeça apenas com seres finitos. Donde surge sua angústia que nenhum psicanalista consegue estancar. Ela é mais que psíquica; é fundamental e ontológica. Por outra parte, ele emerge como um ser ético, capaz de responsabilidade, sensível a valores que lhe permitem elaborar um projeto pessoal e coletivo de construção de relações benfazejas para si, para os outros e para o seu entorno.
Neste seu afã desponta o desafio de base: há labilidde, há processos de desgarramento, traições, violências de toda ordem. Há culpa que resulta de realidades perversas que poderiam ter sido evitadas e não o foram e até foram diretamente intencionadas. Existe, inegavelmente, o mal humano. É o pecado.
Que é pecado neste contexto secular? Pecado é a infidelidade ao projeto de base e aos valores com os quais o ser humano se propunha realizar-se pessoal e socialmente. Pecado é mais que um ato desviante. É uma atitude (opção fundamental) que compromete e abala um projeto pessoal e social como um todo.
Eis que se planteia a questão: pode o ser humano superar sua labilidade e realizar seu projeto? Kant, em nome de tantos, afirma resignado: somos destinados ao bem mas inclinados ao mal. Assim é e assim será. Só a boa vontade representa um valor supremo. Mas ela nunca se realiza plenamente. A ética da responsabilidade e do projeto humano permanece numa abertura completa. Deixa o ser humano em seu desamparo.
Analistas contemporâneos, como um conhecido psicanalista alemão, Karl Richter, que une psicanálise com política e espiritualidade com compromisso social transformador, falam do “complexo de Deus” do homem da modernidade. Ele esvaziou a idéia de Deus e conferiu a si os atributos da divindade. Ele se fez um deus, com a responsabilidade de criar, de tudo prover, de tudo ordenar e de projetar um sentido plenificador. Foi seu excesso. Cobrou demais de si. Olvidou sua limitação, sua mortalidade e que é pior, o laço que o une a todos os demais seres do universo numa rede sofisticada de interdependências. A voracidade de usar o poder para se auto-afirmar e dominar a natureza pôs em marcha um imenso processo de destruição afetando as demais culturas e o frágil equilíbrio ecológico do planeta. Ele criou o princípio de auto-destruição de si e das condições de vida do planeta. Hoje ele teme o poder do projeto da tecno-ciência, levado avante sem sabedoria e sentido de medida. É nesse contexto que se recoloca em outros termos a questão do pecado.
3. Pecado como desintegração com o todo
Como consequência da nova cosmologia, quer dizer, daquela imagem do mundo que resulta das contribuições das ciências da Terra e da vida, da física quântica e da antropologia contemporânea surge um novo estado de consciência. O ser humano se sente inserido numa história que já possui l5 bilhões de anos e que conheceu quatro grandes atos: o cosmos, a vida, o homem e a humanidade. Por mais complexa que tenha sido esta história e apesar das devastações que nosso planeta conheceu, há nela uma profunda unidade. Tudo forma um sistema sofisticadíssimo de inter-retro-relações onde energias primordiais, partículas elementares, campos morfogenéticos e matéria visível e escura estruturam o todo, todos os seres e a cada um de nós. Descobrimo-nos como parte e parcela desse imenso processo. E agora estamos inaugurando o quarto patamar, o planetário. Somos uma espécie junto com outras espécies, encontrando-nos todos juntos num único lugar: o planeta Terra. Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como humanos, somos a própria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Conscientizamo-nos do fato de que temos a mesma origem e o mesmo destino que o planeta Terra, de que podemos ser o Satã da Terra bem como seu anjo bom, protetor.

Historicamente cometemos um sacrilégio: quebramos a lei fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca existimos sozinhos mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de ficarmos junto com eles, na ilusão de que as coisas só tem sentido na medida em que se ordenam a nós, entregues ao nosso bel-prazer. Cometemos um pecado ecológico. Deixamos de respeitar a autonomia dos demais seres, muito mais ancestrais que nós. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vêm de cada ser e do inteiro universo. Descuidamos de decifrar aquela Energia que tudo penetra e re-liga criando um cosmos e não um caos. Não auscultamos nosso interior onde Ela brilha como um sol e se manifesta como elan vital e entusiasmo por viver, lutar e criar.
Hoje da desintegração buscamos uma nova integração com o Todo. Queremos identificar aquele elo perdido que tudo liga e re-liga. Desta re-ligação nasce uma nova religião cósmica ou revitaliza as religiões históricas que se estiolaram.
4. Conclusão: a força regeneradora do amor incondicional e da misericórdia.
Concluimos: o pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte original (a experiência judeu-cristã), como força de desintegração do ser humano consigo mesmo como nó de relações e com o seu projeto de auto-realização pessoal e social (experiência da modernidade) e por fim como força de desintegração com o Todo (a experiência ecológica). Sob a palavra pecado se esconde o drama da existência humana. Ele parece trágico no sentido de aparentar uma contradição insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana. Entretanto as religiões e caminhos espirituais são unânimes em afirmar: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado definitivamente à condição de pecado. Ele tem um caminho a seguir, aquele do amor incondicional: sair de si em direção ao outro na alegria desinteressada de estar com ele e de fazer comunhão com ele, sem retorno, para além de qualquer diferença, de condição social, moral e religiosa. Esse amor é regenerador e está no âmbito das possibilidades humanas. Se o cristianismo possui uma contribuição universal a dar é exatamente afirmar esta capacidade amorosa do ser humano e apresentar sob a forma de amor a Suprema Realidade. Num dos Salmos do Primeiro Testamento (103) se diz: “O Senhor como um pai, sente compaixão por seus filhos e filhas, porque ele conhece nossa natureza e nunca esquece de que somos pó. Não está sempre nos acusando, nem guarda rancor para sempre, porque é compassivo e clemente e sua misericórdia é de sempre e para sempre”.

Nesta esperança podemos atravessar a noite escura dos pecados, porque há um sol que ilumina cada recanto de nossa vida e do universo e não conhece nenhum ocaso. Deus como Magna Mater recolhe todos os seus filhos e filhas ao seu útero eterno.

Ensaio lindissimo

























...mulher linda aliada a um bom fotográfo...

Etica e espiritualidade face a situações-limite de vida e de morte
Estamos em tempos de transversalidade dos discursos, buscando convergências nas diversidades, em benefício da qualidade humana, espiritual e cívica dos seres humanos.
Hoje temos consciência clara sobre o limite e o alcance da medicina e da lei com referência ao complexo problema dos doentes terminais e da morte. Pessoalmente estimo que essa questão, lógico, comporta dimensões científicas, técnicas e jurídicas mas também nos remete a questões de natureza cultural e filosófica: qual a imagem que temos do ser humano? Que visão projetamos da vida cuja compreensão mais profunda vem sendo elaborada no interior das ciências biológicas, da moderna cosmologia e de uma compreensão ampliada do do processo da evolução ascendente? Uma nova ótica provoca uma nova ética.
1. O cuidado: essência concreta do ser humano
Sobre isso gostaria de refletir no sentido de levar avante a discussão com a eventual contribuição da filosofia, nomeadamente da ética. Gostaria de articular a reflexão ao redor do tema do cuidado, tão essencial à vida, especialmente à vida humana em seu limite extremo de doença e de morte.

A ética do cuidado é conatural aos médicos e enfermeiros e também aos promotores do direito e da justiça na sociedade. No meu livro Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra tentei vertebrar um pensamento que acolhesse essas questões e as aprofundasse no arco de uma visão mais arquitetônica, própria da filosofia e da ética. Parti de uma conhecida fábula de Higino, um filosófo escravo egípcio-romano, na aparece claramente que a essência do ser humano não reside tanto no espírito e na liberdade, quanto no cuidado.
O cuidado significa uma relação amorosa com a realidade. Importa um investimento de zelo, desvelo, solicitude, atenção e proteção para com aquilo que tem valor e interesse para nós. Tudo o que amamos tambem cuidamos e vice-versa. Pelo fato de sentirmo-nos envolvidos e compromeitos com o que cuidamos, cuidado comporta também preocupação e inquietação.
O cuidado constitui a plataforma real que possibilita as demais dimensões do humano emergirem. Sem ele não guardariam sua característica humana. Martin Heidegger em seu Ser e Tempo dedica alguns dos mais profundos parágrafos a essa visão do cuidado essencial, como a natureza concreta do ser humano no mundo com os outros. Devido à sua essencialidade, dizia Horácio, o poeta romano, “o cuidado nos acompanha como uma sombra ao largo de toda a vida”. Tudo aquilo que fizermos com cuidado significa uma força contra a entropia, contra o desgaste, pois prolongamos a vida e melhoramos as relações com a realidade.
A crise da cultura mundial reside na falta de cuidado, falta clamorosa no tratamento das crianças e dos idosos dos eco-sistemas, das relações sociais e de nossa própria profundidade. É o cuidado que salvará o amor, a vida e nosso esplendoroso planeta Terra.
Na Carta da Terra, documento elaborado ao longo de 8 anos, envolvendo as bases da sociedade e o melhor do pensamento ecológico, político e ético de 46 países e implicando mais de 200 mil pessoas, visando garantir o futuro do Planeta e da humanidade e recentemente acolhido pela UNESCO, nesta Carta, o eixo estruturador é a ética do cuidado. Para vocês da medicina e da enfermagem, essa assunção não significa nenhuma surpresa, pois, como disse e repito, o cuidado é a essência da atitude curativa dos operadores da saúde. Já no século passado emergia poderosamente essa perspectiva do cuidado com a famosa enfermeira inglesa Florence Nightingale. Ela deixou a Inglaterra e foi tratar, sob a ótica do cuidado, os soldados feridos na violenta guerra da Criméia. Em seis meses conseguiu reduzir de 42% a 2% a mortandade entre os soldados feridos. De volta organizou toda uma rede de hospitais que davam centralidade ao cuidado. Deu origem a uma corrente de pensamento e de ética na enfermagem, articulada ao redor do cuidado, hoje muito forte nos Estados Unidos e no mundo inteiro.
Particularmente a partir dos anos 70 começou a se discutir a ética da enfermagem utilizando a categoria cuidado . Aí aparecia o cuidado como a aura benfazeja que deve impregnar a investigação científica e a utilização do aparato tecnológico. Estes não devem ser subestimados nem relativizados em nome do cuidado. Antes, devem servir à atitude de cuidado pois só então servem à integralidade dos pacientes a serem curados ou acompanhados em sua grande travessia da morte. Cuidado (âmbito mais da enfermagem) e cura (âmbito da medicina) devem andar de mão dadas, pois representam dois momentos simultâneos de um mesmo processo. Frequentemente somos confrontados com a situação penosa de doentes terminais. A medicina contemporânea tem condições de prolongar por muito tempo a vida, mesmo no âmbito de situações-limite e para além de qualquer espectativa de reversibilidade. Há situações que comportam grande dor dos pacientes e gastos altíssimos para a família que quase vai a falência no afã de garantir o tratamento de seus familiares terminais. Como atuar em casos deste gênero? Prolongar a todo custo a vida ou deixar que ela siga o seu curso rumo à morte?
Tive a oportunidade de acompanhar a grande travessia de uma das mais brilhantes inteligências brasileiras e cristãs, o Dr. Alceu Amroso Lima (Tristão de Athaide) no hospital Santa Teresa de Petrópolis. Ele foi durante toda a vida um paladino da liberdade, especialmente nos tempos de chumbo da ditadura militar. Com seus mais de 90 anos e sob muitos achaques, padecia ligado a muitos aparelhos e a tubos. Num dado momento de distração dos enfermeiros, arrancou tudo e se libertou. Criou-se um impasse para cuja solução fui convidado a opinar. Tratava-se de ligar ou não ligar aqueles aparelhos todos para permitir ao Dr. Alceu prolongar por um pouco mais a vida? Suspeitando do impasse, ele me sussurou ao ouvido: “eu lutei a vida inteira pela liberdade e não quero morrer sob ferros como um escravo, isso não é digno, deixem-se morrer em paz”.
Foi o que eu disse ao corpo médico: “respeitem o curso natural da vida do Dr. Alceu, porque a vida é mortal e ela precisa ser respeitada em sua qualidade de mortal. Ademais, o Dr. Alceu é um cristão profundamente convicto na vida eterna; a doença não lhe tira a vida, ele a entrega Aquele de quem a recebeu, a Deus; deixem-no morrer como quer, em plena liberdade”. E assim foi feito. E morreu com a aura de um liberto. Essa atitude significa também cuidado para com a natureza da vida, em sua finitude e mortalidade.
2.Uma compreensão mais complexa do ser humano
Essas pequenas referências nos suscitam a questão que gostaria de rapidamente abordar no contexto das duas conferências aqui feitas: qual a compreensão do ser humano que preside nossas práticas terapêuticas? Façamos um ensaio de reflexão filosófica.

Antes de mais nada importa enfatizar que o ser humano constitui uma totalidade extremamente complexa. Quando dizemos “totalidade” significa que nele não existem partes justapostas. Tudo nele se encontra articulado formando um todo orgânico. Quando dizemos “complexa” significa que o ser humano não é simples, mas a sinfonia de múltiplas dimensões que coexistem e se interpenetram. Dentre muitas discernimos três dimensões fundamentais do único ser humano, dimensões que ocorrem sempre juntas e articuladas entre si: a exterioridade (corpo), a interioridade (mente) e a profundidade (espírito).
Essa consideração holística nos propicia uma visão mais integrada que beneficia a medicina e a enfermagem em sua missão de cura...
A exterioridade do ser humano é tudo o que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade concreta. Ela ganha densidade especial através do cuidado, já referido anteriormente. Sem o cuidado eles não sobrevivem nem se desenvolvem. Por isso importa ter cuidado para com o ar que respiramos, com os alimentos que consumimos/comungamos,com a água que bebemos,com a roupas que vestimos e com as energias que vitalizam nossa corporeidade. Normalmente se chama essa dimensão de corpo. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo inteiro, vivo, dotado de inteligência, de sentimento,de compaixão, de amor e de êxtase enquanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.
A interioridade do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro e diz respeito ao universo interior, tão complexo quanto ao universo exterior. A interioridade humana se constela ao redor do consciente e do inconsciente pessoal e coletivo. Por isso não é jamais vazia mas habitada por instintos, paixões, imagens poderosas, arquétipos ancestrais e principalmente pelo desejo. O desejo constitui, possivelmente, a estrutura básica da interioridade humana. Sua dinâmica é ilimitada. Como seres desejantes, nós humanos não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente objeto do desejo é o Ser em sua totalidade. Tentação permanente consiste em identificar o ser com alguma de suas manifestações. Quando isso ocorre, surge a fetichização que é a ilusória identificação da parte com o todo, do absoluto com o relativo. O efeito é a frustração do desejo e o sentimento de irrealização. O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que, ao passar pelos vários objetos de sua realização, não perca a memória bemaventurada do único grande objeto que o faz realmente descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade fontal. A interioridade é chamada também de mente humana. Novamente mente , bem entendida, como a totalidade do ser humano voltado para dentro, captando seu dinamismo interior e também as ressonâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.
Por fim, o ser humano possui profundidade. Ele possui a capacidade de captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exterioridade e da interioridade. Ele apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo. Assim a montanha não é apenas montanha. Ela traduz o que significa majestade. O mar, a grandiosidade. O céu estrelado, a infinitude. Os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana.
O ser humano coloca questões fundamentais que estão sempre presentes em sua agenda: de onde viemos, para onde vamos, como devemos viver? Que significa a doença e finalmente a morte? Como preservar o mundo que nos sustenta? Quem somos nós e qual a nossa função no conjunto dos seres? Que podemos esperar e qual nome dar ao mistério que subjaz a todo o universo e que reluz em cada coisa à nossa volta? Ao balbuciar respostas a estas questões vitais captamos valores e significados e não apenas constatamos fatos e enumeramos acontecimentos
Na verdade, o que definitivamente conta não são as coisas que nos acontecem. Mas o que elas significam para a nossa vida e que experiências e visões novas nos propiciam. As coisas, então, passam a ter caráter simbólico e sacramental: nos recordam o vivido, nos reenviam a questões mais globais e, a partir daí, alimentam nossa profundidade.
Colocar questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa constitui o que se chamou de espírito. Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento pleno de nossa totalidade consciente, vivida e sentida dentro de outra totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassada: o universo das coisas, das energias, das pessoas, das produções histórico-socias e culturais. Pelo espírito captamos o todo e a nós mesmos como parte e parcela deste todo.
Mais ainda. O espírito nos permite fazer uma experiência de não-dualidade. “Tu és isso tudo” dizem os Upanishads da India, referindo-se ao universo. Ou “tu és o todo” dizem os yogis. “O Reino de Deus está dentro de vós” proclama Jesus. Estas afirmações nos remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte Originante. Uma fio de energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não disfonia.
A planta não está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância, símbolo e valor. Há em mim uma dimensão planta, bem como uma dimensão montanha, uma dimensão animal, e uma dimensão Deus. Sentir-se espírito não consiste em saber estas coisas. Mas, em vivenciá-las e fazer delas conteúdo de experiência. Quando isso ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. A partir da experiência tudo se transfigura. Tudo vem carregado de veneração e sacralidade. Não estamos mais sós, centrados em nosso antropocentrismo ou em nossa visão utilitarista das coisas. Fazemos parte da imensa comunidade cósmica. Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que empapa todo o universo e a natureza à nossa volta.
3. A morte como inteligente invenção da vida
É nesse contexto que importa colocar o tema da morte. O sentido que damos a vida é o sentido que damos a morte e o sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. A morte pertence a vida e a vida pertence ao mistério, àquele processo misterioso de auto-organização da matéria que permite a vida eclodir, em sua imensa diversidade.

A vida, como todas as coisas, é mortal. Quando alguém é concebido já é suficientemente velho pra morrer. Começa a morrer devagar, em prestações e vai morrendo cada dia um pouco até acabar de morrer.
Então a morte não vem no fim da vida, a morte está no coração da vida. Acolher a morte como parte da vida, significa tratar diferentemente a vida, acolher sua finitude e suas limitações, sem amargura e ressentimento, mas com jovialidade e sentido de realidade. Numa perspectiva evolutiva e holística a morte é considerada uma sábia invenção da própria vida, para poder continuar num outro nivel mais alto e realizar seu propósito de expansão do cuidado, do amor e da liberdade.
A morte não é entendida como um fracasso ou como uma dissolução mas como um dos momentos da própria vida, tal o momento de nascer, o momento de ficar adulto, o momento das grandes decisões, o momento de casar e outros. Assim a morte significa um momento alquímico de uma grande transformação, da grande travessia para um novo estado de consciência e de realização do projeto infinito que é cada ser humano. Na metáfora brilhante do Dr. Paulo César, a morte deixa de ser “fantasma escondido debaixo da cama” para se transformar na irmã que vem nos tomar pela mão e nos conduzir para uma forma mais complexa e mais alta de vida. Assim pensou e viveu S.Francisco de Assis que morreu literalmente cantando e saudando a irmã morte.
Essa concepção de vida e de morte foi historicamente trabalhada pelas religiões. Elas apresentam um sentido derradeiro para o ser humano, uma cura total de sua ânsia de infinito e de vontade de viver. Para um médico humanista, tais concepções devem ser tomadas a sério, porque elas atuam poderosamente sobre os pacientes no sentido de integrarem os sofrimentos e os medos face ao imponderável da grande travessia. Eles querem ser acompanhados pela presença humana, calorosa e solidária e não abandonados nas UTIs entregues à parafernália tecnológica. Assim como entramos no mundo cercados pelo carinho humano, queremos também nos despedir dele circundados dos cuidados e da benquerença dos familiares e dos amigos.
4. Atitude ética básica face a situações terminais
Para concluir minhas reflexões, gostaria de apresentar alguns pontos acerca das atitudes a se tomar face a doentes terminais.

Como somos responsáveis pela nossa vida assim devemos ser responsáveis também pela nossa morte.
Como temos direito a uma vida digna da mesma forma temos direito a uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a ficar presos a aparelhos e medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo, o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana.
A vida é o melhor fruto do universo como auto- organização da matéria e, numa perspectiva espiritual, o maior dom de Deus. Mesmo assim, a vida cái sob a responsabilidade dos seres humanos. Somos responsáveis pelo comêco da vida e também responsáveis pelo fim da vida.
Outrora, a teologia moral cristã condenava o planejamento familiar, pois imaginava, erroneamente, que era uma intromissão no desígnio divino de colocar vidas no mundo. Hoje, todas as igrejas entendem que Deus colocou à responsabilidade do ser humano o começo da vida. Também o fim da vida foi entregue à sua responsabilidade (não à sua arbitrariedade).
Não cabe ao estado assumir a função de decidir quando uma vida dever prolongada ou não. O eugenismo nazista nos alerta contra essa tentação. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade ocupam o seu lugar os familiares e os médicos. Isso implica:
- O médico fará tudo para curar o paciente. Não significa que use todos os métodos, meios artificiais e técnicos para prostergar a morte.
- Uma terapia só tem sentido quado se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa.
- O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais de santo etc), dos amigos próximos.
- Devem ser tomadas em consideração as crenças religiosas e espirituais do paciente com referência ao sentido da vida e da morte. Caso contrário lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer. Para o cristianismo - a religião das maiorias de nosso povo - a morte não é um fim puro e simples, mas um peregrinar para a Fonte originária de toda vida. Morrendo, acabamos de nascer. Não vivemos para morrer, mas morremos para ressuscitar e para viver mais e melhor. Destarte a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem benaventurada para a plenitude da vida.
- Morrer é fazer uma despedida da vida, de forma agradecida, por aquilo que ela nos propiciou. Morrer é então fechar os olhos para ver melhor o sentido do universo e do Mistério que o circunda e perpassa.
- Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais, pois a vida e a morte são assimiladas num horizonte maior e transcendente

Por Leonardo Boff