terça-feira, 2 de agosto de 2011

Leonardo Boff

Pecado: essa madeira cheia de nós

Pecado é uma categoria da tradição judeu-cristã mediante a qual se procurou interpretar a dramaticidade da condição humana. A condição humana, em qualquer nível que a experienciemos, se constitui num drama, cheio de paradoxos. No sentido etimológico desta palavra, apresenta-se simultaneamente como sim-bólica e dia-bólica. Por um lado mostra tendências de amorização, de cooperação, de sinergia (momento simbólico; sim-bólico em grego significa o que une e congrega), por outro revela dimensões de exclusão, de ódio e de destruição (momento diabólico; em grego significa o que desune e desagrega). Ambas as dimensões convivem simultaneamente no mesmo sujeito humano. S. Paulo exprime esse paradoxo dizendo:”Não faço o bem que quero mas cometo o mal que não quero”(Aos Romanos 7, 19). Kant em l784 em sua “Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolítico” bem o expressou: o ser humano é “essa madeira tão nodosa que não permite se talhar dela vigas retas” (proposição VI). Outros pensadores asseveram algo semelhante: a situação humana é como uma balança desregulada, um relógio desajustado, uma torre de Pisa inclinada, um animal coxo e encurvado. Por que somos assim? Estas questões, reais e não imaginadas, pertencem à agenda de qualquer reflexão humana em todos os tempo e em todas as culturas.
Quando falamos de pecado nos referimos à interpretação que a reflexão judeu-cristã, consignada nas Escrituras do Primeiro e do Segundo Testamento, formulou de cara a esta dramática realidade.
Nossa exposição quer, suscitamente, apresentar as três principais metamorfoses que a idéia de pecado conheceu ao largo do tempo: o pecado numa mentalidade sacralizada, o pecado numa mentalidade secular e o pecado na perspectiva da cosmologia contemporânea.
1. Pecado como ruptura de uma aliança de amor.
A singularidade da concepção judeu-cristã reside no fato de haver trabalhado o drama humano à luz da experiência espiritual e religiosa. Essa experiência é antropológica pois o espiritual e religioso não são monopólio das religiões e das tradições espirituais, nem é expressão da falsa consciência e da patologia humana no afã de buscar segurança. Antes constitui uma dimensão do profundo humano, da subjetividade abissal e daquela capacidade de colocar questões radicais acerca do sentido da vida, da origem do universo, da nossa função no conjunto dos seres e de nossa esperança para além da vida. Espírito é aquele momento da consciência em que o ser humano se sente parte e parcela do todo, se revela capaz de ouvir a mensagem que vem da grandeur do universo, apto a identificar ordens e sentidos nos processos naturais e históricos e aberto a captar valores que transcendem o horizonte de seus interesses imediatos. Principalmente ele pode dialogar com a Realidade Suprema e estabelecer comunhão com ela. Todas as culturas e tradições da humanidade, desde a mais alta ancestralidade do ser humano, no estágio consciente do processo de hominização (pelo menos nos últimos cem mil anos) testemunham sua abertura espiritual e religiosa. Esses testemunhos não podem ser enganosos. Remetem a algo fundamental do ser humano.

A tradição bíblica tematizou esta dimensão. Ela se inscreve dentro da atmosfera do sagrado. E é neste código que lê a história e o drama humano. Deus é uma evidência existencial. É experimentado como um ser de relações. Cuida de sua criação e do ser humano. Debruça-se sobre suas chagas. Faz aliança com ele, aliança de amizade e de amor. Faz do ser humano aliado (parte da aliança) de sua obra na criação, pois ele foi criado criador. Esse Deus é invocado como Javé que significa “o Deus que está presente em sua caminhada”, ou como Pai e Mãe de bondade e misericórdia. A aliança entre Deus e os seres humanos encontra na aliança conjugal sua melhor representação. Assim como entre os esposos vigora amor e fidelidade, da mesma forma entre Deus e os seres humanos.
Pecado é a ruptura desta aliança de amor; é infidelidade do pacto de intimidade. Por isso uma das palavras mais carregadas de conturbação é a palavra hebraica Kâ-as que significa “enciumar-se”. Pela traição, Deus fica enciumado, pois o ser humano, no dizer do profeta Oséias, abandonou Deus e “correu atrás de outras amantes”(Os 2,l5; cf. Ex 20,5; Dt 5,3, Jó 24,19). Pecado, neste contexto, é uma relação negativa diante de Deus, ruptura de uma aliança de amor. Esse Deus quer nos amemos como irmãos e irmãs e que vivamos socialmente em justiça e paz. O Decálogo é chamado no Antigo Testamento de “Código da Aliança”. A aliança com Deus se estendia a uma aliança entre os seres humanos. A ruptura entre os seres humanos não configurava apenas uma injustiça, quer dizer uma falta moral e uma infração legal, mas um desrespeito para com Deus e a sua vontade. Portanto, era um pecado.
Em conclusão: no âmbito de uma experiência do Divino, personalizado e interiorizado, pecado é uma categoria religiosa mediante a qual se procura entender o mal humano pessoal e social. Esse mal humano faz mal a Deus, magoa-o, rompe um laço de amizade e de amor. O ser humano afirma seu eu absolutamente. Decide construir sua própria história sem Deus e sem referência ao propósito de Deus manifestado no outro, na comunidade e na criação. Na convicção da tradição judeu-cristã tal atitude representa a grande errância do ser humano, seu verdadeiro drama. Ele demanda libertação e redenção.
2. Pecado como infidelidade ao próprio projeto.
Como enteder o pecado numa cultura que coloca a experiência religiosa entre parêntesis e se define pela autonomia do ser humano, de sua razão e de seu projeto existencial? Sem referência a Deus pode-se falar ainda de pecado? É a questão da cultura da modernidade.

O que podemos dizer é o seguinte: o ser humano se define como um nó de relações, um centro de criação e uma sede de decisões. Ele é habitado por uma estrutura de desejo, desejo esse que, no seu termo, é ilimitado, pois não encontra, no âmbito dos objetos de sua experiência, nada que lhe seja realmente adequado. Ele se sente um projeto infinito e tropeça apenas com seres finitos. Donde surge sua angústia que nenhum psicanalista consegue estancar. Ela é mais que psíquica; é fundamental e ontológica. Por outra parte, ele emerge como um ser ético, capaz de responsabilidade, sensível a valores que lhe permitem elaborar um projeto pessoal e coletivo de construção de relações benfazejas para si, para os outros e para o seu entorno.
Neste seu afã desponta o desafio de base: há labilidde, há processos de desgarramento, traições, violências de toda ordem. Há culpa que resulta de realidades perversas que poderiam ter sido evitadas e não o foram e até foram diretamente intencionadas. Existe, inegavelmente, o mal humano. É o pecado.
Que é pecado neste contexto secular? Pecado é a infidelidade ao projeto de base e aos valores com os quais o ser humano se propunha realizar-se pessoal e socialmente. Pecado é mais que um ato desviante. É uma atitude (opção fundamental) que compromete e abala um projeto pessoal e social como um todo.
Eis que se planteia a questão: pode o ser humano superar sua labilidade e realizar seu projeto? Kant, em nome de tantos, afirma resignado: somos destinados ao bem mas inclinados ao mal. Assim é e assim será. Só a boa vontade representa um valor supremo. Mas ela nunca se realiza plenamente. A ética da responsabilidade e do projeto humano permanece numa abertura completa. Deixa o ser humano em seu desamparo.
Analistas contemporâneos, como um conhecido psicanalista alemão, Karl Richter, que une psicanálise com política e espiritualidade com compromisso social transformador, falam do “complexo de Deus” do homem da modernidade. Ele esvaziou a idéia de Deus e conferiu a si os atributos da divindade. Ele se fez um deus, com a responsabilidade de criar, de tudo prover, de tudo ordenar e de projetar um sentido plenificador. Foi seu excesso. Cobrou demais de si. Olvidou sua limitação, sua mortalidade e que é pior, o laço que o une a todos os demais seres do universo numa rede sofisticada de interdependências. A voracidade de usar o poder para se auto-afirmar e dominar a natureza pôs em marcha um imenso processo de destruição afetando as demais culturas e o frágil equilíbrio ecológico do planeta. Ele criou o princípio de auto-destruição de si e das condições de vida do planeta. Hoje ele teme o poder do projeto da tecno-ciência, levado avante sem sabedoria e sentido de medida. É nesse contexto que se recoloca em outros termos a questão do pecado.
3. Pecado como desintegração com o todo
Como consequência da nova cosmologia, quer dizer, daquela imagem do mundo que resulta das contribuições das ciências da Terra e da vida, da física quântica e da antropologia contemporânea surge um novo estado de consciência. O ser humano se sente inserido numa história que já possui l5 bilhões de anos e que conheceu quatro grandes atos: o cosmos, a vida, o homem e a humanidade. Por mais complexa que tenha sido esta história e apesar das devastações que nosso planeta conheceu, há nela uma profunda unidade. Tudo forma um sistema sofisticadíssimo de inter-retro-relações onde energias primordiais, partículas elementares, campos morfogenéticos e matéria visível e escura estruturam o todo, todos os seres e a cada um de nós. Descobrimo-nos como parte e parcela desse imenso processo. E agora estamos inaugurando o quarto patamar, o planetário. Somos uma espécie junto com outras espécies, encontrando-nos todos juntos num único lugar: o planeta Terra. Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como humanos, somos a própria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Conscientizamo-nos do fato de que temos a mesma origem e o mesmo destino que o planeta Terra, de que podemos ser o Satã da Terra bem como seu anjo bom, protetor.

Historicamente cometemos um sacrilégio: quebramos a lei fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca existimos sozinhos mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de ficarmos junto com eles, na ilusão de que as coisas só tem sentido na medida em que se ordenam a nós, entregues ao nosso bel-prazer. Cometemos um pecado ecológico. Deixamos de respeitar a autonomia dos demais seres, muito mais ancestrais que nós. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vêm de cada ser e do inteiro universo. Descuidamos de decifrar aquela Energia que tudo penetra e re-liga criando um cosmos e não um caos. Não auscultamos nosso interior onde Ela brilha como um sol e se manifesta como elan vital e entusiasmo por viver, lutar e criar.
Hoje da desintegração buscamos uma nova integração com o Todo. Queremos identificar aquele elo perdido que tudo liga e re-liga. Desta re-ligação nasce uma nova religião cósmica ou revitaliza as religiões históricas que se estiolaram.
4. Conclusão: a força regeneradora do amor incondicional e da misericórdia.
Concluimos: o pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte original (a experiência judeu-cristã), como força de desintegração do ser humano consigo mesmo como nó de relações e com o seu projeto de auto-realização pessoal e social (experiência da modernidade) e por fim como força de desintegração com o Todo (a experiência ecológica). Sob a palavra pecado se esconde o drama da existência humana. Ele parece trágico no sentido de aparentar uma contradição insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana. Entretanto as religiões e caminhos espirituais são unânimes em afirmar: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado definitivamente à condição de pecado. Ele tem um caminho a seguir, aquele do amor incondicional: sair de si em direção ao outro na alegria desinteressada de estar com ele e de fazer comunhão com ele, sem retorno, para além de qualquer diferença, de condição social, moral e religiosa. Esse amor é regenerador e está no âmbito das possibilidades humanas. Se o cristianismo possui uma contribuição universal a dar é exatamente afirmar esta capacidade amorosa do ser humano e apresentar sob a forma de amor a Suprema Realidade. Num dos Salmos do Primeiro Testamento (103) se diz: “O Senhor como um pai, sente compaixão por seus filhos e filhas, porque ele conhece nossa natureza e nunca esquece de que somos pó. Não está sempre nos acusando, nem guarda rancor para sempre, porque é compassivo e clemente e sua misericórdia é de sempre e para sempre”.

Nesta esperança podemos atravessar a noite escura dos pecados, porque há um sol que ilumina cada recanto de nossa vida e do universo e não conhece nenhum ocaso. Deus como Magna Mater recolhe todos os seus filhos e filhas ao seu útero eterno.

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