quarta-feira, 20 de junho de 2012

O Hóspede Despercebido (Paulo Leminski)

O Hóspede Despercebido (Paulo Leminski)

         Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
         de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
         Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
         Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
         Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
         me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
         Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
         algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.



[na minha a tua ferida] (Paulo Leminski)

          essa a vida que eu quero,
querida

          encostar na minha
a tua ferida




[matéria é mentira] (Paulo Leminski)

          essa idéia
ninguém me tira
          matéria é mentira




[não fosse isso] (Paulo Leminski)

não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase



[esta vida é uma viagem] (Paulo Leminski)

     esta vida é uma viagem
pena eu estar
     só de passagem



coração
PRA CIMA
escrito embaixo
FRÁGIL



[quem for louco que volte] (Paulo Leminski)

      vida e morte
amor e dúvida
      dor e sorte

      quem for louco
que volte



HAI KAI (Paulo Leminski)

O ideograma de kawa, "rio", em japonês, pictograma de um fluxo de água corrente, sempre me pareceu representar (na vertical) o esquema do haikai, o sangue dos três versos escorrendo na parede da página..
HAI

       Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
       o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me,
       ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
       eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.

KAI

       Mínimo templo
para um deus pequeno,
       aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
       meu extremo anjo de vanguarda.

       De que máscara
se gaba sua lástima,
       de que vaga
se vangloria sua história,
       saiba quem saiba.

       A mim me basta
a sombra que se deixa,
       o corpo que se afasta.

 



Rubem Alves



 ”Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”, observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”. Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre o que me calei: “O povo unido jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo. Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere. A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se integrasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos. E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras ideias. Amava a prostituição. Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para sempre.”. Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro “O Homem Moral e a Sociedade Imoral” observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis” por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer. O povo, unido, jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol. Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno”, à semelhança do que aconteceu na China. De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute:
“Caminhando e cantando e seguindo a canção”. Isso é tarefa para os artistas e educadores. O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

Rubem Alves __,_._,___