terça-feira, 22 de novembro de 2011

Linda buceta



Há bocetas que riem e bocetas que falam; há bocetas malucas e histéricas com o formato de ocarinas e há bocetas abundantes e sismográficas que registram o subir e baixar da seiva;
há bocetas canibalistas que se abrem como fauces de baleia e engolem vivo;
há também bocetas masoquistas que se fecham como a ostra, têm conchas duras e talvez uma ou duas pérolas dentro;
há bocetas ditirâmbicas que dançam à mera aproximação do pênis e ficam inteiramente úmidas com o êxtase;
há as bocetas porco-espinho que abrem seus espinhos e sacodem bandeirinhas no Natal; há bocetas telegráficas que praticam o código Morse e deixam a mente cheia de pontos e traços;
há as bocetas políticas que estão saturadas de ideologia e que negam até mesmo a menopausa;
há bocetas vegetativas que não apresentam reação a menos que você as puxe pelas raízes;
há bocetas religiosas que cheiram como Adventistas do Sétimo Dia e estão cheias de contas, minhocas, conchas, excrementos de carneiro e de vez em quando migalhas de pão seco;
há as bocetas mamíferas que são forradas com pele de lontra e hibernam durante o longo inverno;
há bocetas navegantes equipadas como iates, que são para solitários e epilépticos; há bocetas glaciais nas quais você pode deixar cair estrelas cadentes sem provocar uma faísca;
há bocetas mistas que não se enquadram em categorias e descrições, com as quais você só encontra uma vez na vida e que o deixam queimado e marcado;
há bocetas feitas de pura alegria que não têm nome nem antecedente e estas são as melhores de todas, mas para onde voaram elas?
E depois há a boceta das bocetas, que é tudo e que chamaremos de superboceta, porque não é desta terra, mas daquele brilhante país para onde fomos há muito tempo convidados a voar.

Henry Miller

Divirtam-se



Clarice Lispector - Nossa Truculência

Quando penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculência.


Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando minhocas. Deveríamos não comê-las e ao seu sangue? Nunca.


Nós somos canibais, é preciso não esquecer. E respeitar a violência que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue.


Minha falta de coragem de matar uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas aceito.


A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue.


É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculência. É amor também.

Cabeça a prêmio: R$ 80 mil

Defensor da floresta pede ajuda para não morrer


ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
E-mail: mailto:elianebrum@uol.com.br?subject=Coment%E1rio%20-%20Coluna%20Nossa%20SociedadeTwitter: @brumelianebrum
No porto de Altamira, Raimundo Belmiro se prepara para embarcar na voadeira que o levará de volta para casa. Junto com ele viaja o tio, Herculano Porto. Só alcançarão seu destino, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, no Pará, depois de três dias de viagem por rio. Só é possível navegar com a luz do sol. À noite assam no fogo de chão o que pescaram horas antes nas águas, para comer com farinha, amarram a rede numa árvore e dormem para acordar com o barulho impressionante dos macacos. Eles moram numa região da Amazônia entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri – e conhecida por um nome mítico: Terra do Meio. Quem olha para Raimundo e Herculano enxerga dois homens pequenos. Raimundo mais falante, Herculano mais sestroso. São dois gigantes. Todos nós, brasileiros, devemos a eles a preservação de um pedaço da floresta. Nesta guerra travada no coração turbulento da selva, os dois quase perderam a vida anos atrás. E hoje, mais uma vez, aos 46 anos, Raimundo Belmiro tem a cabeça a prêmio. O preço: R$ 80 mil.
Primeiro, é preciso compreender que, na Amazônia brasileira, as ameaças precisam ser levadas a sério. Na luta para proteger a floresta há uma trilha de cadáveres de homens e mulheres honestos, em geral anônimos, quase sempre abandonados pelo Estado.
Se no Rio de Janeiro, no Sudeste do país, uma juíza é executada com 21 tiros, dá para imaginar como a violência se desenrola nos confins do Brasil. Somente em maio, como todos sabemos, cinco pessoas foram assassinadas na Amazônia porque lutavam pelo que todos nós deveríamos estar lutando. Mas não estamos. Se existe floresta nativa em pé, tenhamos certeza, é por causa da luta dessa gente que se organiza, que grita e que morre – e que às vezes consegue fazer o Estado cumprir a lei.
Se Raimundo Belmiro for assassinado depois de ter pedido proteção, a responsabilidade será do governo federal – e também será nossa. Desde o início de agosto, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) sabe que Raimundo Belmiro está com a cabeça a prêmio. O ICMBio é o órgão do governo federal responsável por “fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das Unidades de Conservação federais”.
Apesar de ser área de proteção federal, a reserva extrativista tem sido desmatada pelos fundos, a partir de uma localidade chamada Trairão. Ao derrubar a floresta, os bandidos deparam-se com a resistência de Raimundo Belmiro, principal liderança do Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu nome circula entre a pistolagem da região. Como antes aconteceu com Brasília, Dema, Dorothy, Zé e Maria, apenas o nome de alguns tombados nos últimos anos no Pará.
Estas são as palavras que Raimundo me pediu para levar ao Brasil e ao mundo:
         - Se as autoridades me entendessem e vissem que eu tenho valor, eu queria uma proteção. Uma coisa séria, porque não tá fácil pra mim. Eles sabem quando eu tô na floresta, sabem quando eu tô em Altamira. Estou desprotegido, só tenho a proteção de Deus. E o pessoal tá invadindo lá dentro do Riozinho, tirando madeira. E essa gente ataca pelas costas. À traição.
Raimundo fez esse mesmo pedido de proteção ao escritório do ICMBio de Altamira, no início de agosto. Nesta última sexta-feira, 19, falei com Paulo Carneiro, coordenador-geral de proteção ambiental do ICMBio, em Brasília. Apesar de terem se passado mais de dez dias, Carneiro afirmou que tomara conhecimento da ameaça de morte apenas naquele momento, a partir do meu contato. Também disse que o órgão estava ciente de que existiam focos de desmatamento na reserva extrativista. E assegurou que falaria com Raimundo Belmiro e providenciaria sua proteção a partir desta semana. Caberá a todos nós garantir que essa promessa seja cumprida e que a Amazônia não seja manchada mais uma vez de sangue, em mais uma morte anunciada.
Conheci Raimundo Belmiro, este homem pequeno, de sorriso meio encabulado e coragem amazônica, em 2004. Como 99% dos moradores do Riozinho do Anfrísio, Raimundo Belmiro não existia no Brasil oficial. Não tinha carteira de identidade, nem votava. Descendentes de soldados da borracha, nordestinos pobres levados para o interior da floresta pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, eles foram abandonados na selva quando a o látex deixou de valer a pena. Raimundo e cerca de duas centenas de pessoas viviam quase sem contato com o restante do Brasil. Viviam do extrativismo, como outros milhares de protetores anônimos da floresta.
Mas, se o Estado os ignorava, grileiros e desmatadores não. Eram estes ribeirinhos que estavam entre eles e os lucros da devastação. Para ameaçá-los, os bandidos desfilavam pelo rio com capangas exibindo suas armas, botavam fogo em castanhais e algumas vezes também em casas da Terra do Meio. Sozinhos, armados apenas com velhas espingardas que só serviam para caçar paca, os moradores resistiam lutando pela floresta e pela vida – duas entidades que, para nossa sorte, nunca puderam separar.
Naquele tempo, Raimundo Belmiro, Herculano Porto e Luiz Augusto Conrado (o Manchinha), as três principais lideranças da região, conviviam com a certeza de poderem ser assassinados no próximo segundo. Contei esta história, junto com o fotógrafo Lilo Clareto, numa reportagem publicada em 4/10/2004, que pode ser lida aqui: O Povo do Meio. Na época, a ex-seringueira Marina Silva era a ministra do Meio Ambiente. Como nenhum outro político neste país, Marina compreende a floresta e os homens e mulheres da floresta. E sabe que lá ameaça de morte vira morte.
Naquele momento, com uma sensibilidade que hoje faz muita falta no governo, Marina Silva disse: “O Estado e a sociedade brasileira têm uma dívida com a população extrativista que presta um serviço lá no coração da Amazônia, protegendo a nossa biodiversidade, cuidando dos rios e das florestas. É uma questão de justiça e de estratégia. Eu vivi o que eles viveram. Quando olhei para eles, vi minha gente. Sabia o que eles estavam passando. Não é coisa de entender racionalmente, mas de entender com o coração”.
Por ordem de Marina, os três foram retirados da selva de helicóptero e levados a Brasília para que contassem da guerra da floresta. Ali, ganharam identidade: a do documento e a da história escutada. Em novembro de 2004, Lula assinou o decreto criando a reserva extrativista Riozinho do Anfrísio. Em dezembro, o governo federal deu a Raimundo Belmiro o prêmio Defensores de Direitos Humanos. Agora, sete anos depois, Raimundo mais uma vez está sendo caçado por pistoleiros.
Peço agora que cada um pare de ler por um instante para tentar imaginar o que significa estar no meio da floresta amazônica, ameaçado de morte.
É assim que Raimundo Belmiro se sentia em 2004. É assim que se sente agora.
Antes de empreender sua longa jornada selva adentro, Raimundo Belmiro me disse:
       - Se me matarem, Eliane, matam um homem.
É por ser um homem que Raimundo Belmiro precisa continuar vivo.

P.S. – Para saber mais sobre Raimundo Belmiro e a Amazônia, você pode ler O Povo do Meio, À Espera do Assassino e Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela? Também pode buscar informações nos sites do Instituto Socioambiental e Movimento Xingu Vivo Para Sempre, entre outros.   
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
Revista Época

A mulher nos países árabes

Gostei muito dessa entrevista com a escritora libanesa Joumana Haddad, falando da realidade da mulher no mundo árabe, da primavera árabe e da mulher de forma geral.
O mundo árabe está caindo aos pedaços, diz escritora libanesa
Joumana Haddad teme extremismo e questiona democracia sem participação da mulher
20/11/2011 – 07h00 | O Globo
RIO – “Não posso me dar o luxo de ser otimista. No Líbano, somos treinados para a decepção.” É de forma cética, mas sem perder o sorriso, que a escritora Joumana Haddad olha para a Primavera Árabe e para o papel da mulher no período $ós-revolucionário. Em sua opinião, as ditaduras serão seguidas por outra forma de opressão, o extremismo religioso, e somente após isso os árabes conseguirão romper um círculo vicioso e se libertar. “As pessoas não vão compreender o quanto o extremismo religioso é terrível até sentirem a pressão de viver sob ele”, disse a autora de “Eu matei Sherazade” (Editora Record), durante sua visita ao Rio. Criadora da revista erótica “Jasad” e editora do jornal libanês “An-Nahar”, Joumana acredita que a mulher árabe tem parte da responsabilidade por sua condição e compara “aceitar ser tratada como um pedaço de carne” a usar a burca.
Muitas mulheres estão participando da Primavera Árabe. Esse movimento pode trazer mais direitos para elas?
JOUMANA HADDAD: Sempre me pergunto por que isso (a Primavera Árabe) demorou tanto. Estou feliz em ver as mulheres nas ruas, mas sou cética. Na Tunísia e no Egito, todas essas mulheres que saíram às ruas praticamente desapareceram na pós-revolução, no momento de formar as novas estruturas. Há muita conversa sobre mudanças e democracia, mas nada sobre o papel da mulher, direitos, igualdade. Não há credibilidade ao se falar em democracia sem se falar nos direitos da mulher. O que temo é que, no mundo árabe, estamos acostumados a escolher entre dois monstros. O monstro das ditaduras está caindo. Mas o outro monstro, o extremismo religioso, está mostrando o seu rosto mais e mais a cada dia. E ele também é muito perigoso. Mas acho que esse é um passo necessário para o mundo árabe atravessar. Ver que o extremismo é tão terrível quanto as ditaduras, para só então começar a pensar no futuro e realmente lutar por liberdade. Então, acho que é muito cedo para dizer se algo vai mudar no mundo árabe. Não estou otimista.
Essa situação poderia levar a um regime fundamentalista?
JOUMANA: Sim, sim. Acho que isso vai acontecer. Não sou analista política, mas vejo a direção que a coisa vai tomando em Tunísia, Egito, Líbia. Não estou dizendo que as ditaduras deveriam ter permanecido. Digo que o que vem depois delas é outra forma de opressão. E espero que depois dela acabe esse purgatório. As pessoas não vão compreender o quanto o extremismo religioso é terrível até sentirem a pressão de viver sob ele.
No seu livro, a senhora fala da multiplicação do obscurantismo no mundo árabe… Como ele se apresenta?
JOUMANA: Onde eu vou vejo uma queda, o mundo árabe está aos pedaços. Quando comparo o que era o mundo e a cultura árabes mil anos atrás, só posso pensar que estamos retrocedendo, que os obscurantistas estão se multiplicando como fungos. É visível a olho nu. O que eu via nas ruas do Cairo dez anos atrás não é o que vejo agora. Estive no Cairo uma semana antes do início da revolução e não vi nas ruas uma só mulher que não estivesse com os cabelos cobertos. Quem sai assim (aponta para os próprios cabelos soltos) é assediada e sujeita a muitas formas de violência. Há essa tendência por todos os lados. Isso não me deixa esperançosa. Não posso me dar o luxo de ser otimista. Eu venho do Líbano. No Líbano, somos treinados para a decepção. Acho que mais decepções nos esperam no mundo árabe antes de conseguirmos romper esse círculo vicioso.
A senhora se mostra furiosa diante da possibilidade de ser vista como uma mulher oprimida apenas por ser árabe, mas é a situação da maioria, não?
JOUMANA: Sim, porque quando se diz mulher árabe qual a primeira imagem que vem à mente? Véu, opressão, vítima. Isso existe e é a maioria. Quero dizer que há uma minoria que é diferente, que está lutando para conseguir uma vida melhor para ela e para as outras, e que merece ser vista e ouvida. Porque se lhe dermos voz e ferramentas, ela terá uma grande chance de mudar a vida das demais.
Na festa literária de Pernambuco, na qual esteve antes de vir ao Rio, a senhora disse que as mulheres são tão culpadas quanto os homens por sua condição. Por quê?
JOUMANA: Não se trata de culpar a vítima, mas de dar responsabilidade. Muitas vezes, preferem dizer: “Sou uma vítima, não sou dona do meu destino.” E se rendem. Eu acredito na responsabilidade, e com a responsabilidade vem o poder. Se acredito que parte é minha escolha, posso tentar mudar. As mulheres na Arábia Saudita dizem: “O que podemos fazer? Sequer podemos dirigir um carro.” Mas elas têm um poder muito grande: a maternidade. Por que não educam filhos e filhas para romperem esse círculo vicioso? Dizem que a mulher é livre no Líbano porque pode dançar, vestir o que quiser. Mas se lermos as leis libanesas, vamos nos sentir humilhadas. São leis medievais que tratam a mulher como cidadã de segunda classe. Se uma libanesa se casar com um estrangeiro, não pode dar sua nacionalidade aos filhos, ao contrário do homem. Não há lei para proteger a libanesa da violência doméstica. Apenas recentemente cancelaram as leis de crimes de honra. Num divórcio, a mulher sempre perde a guarda dos filhos.
É fácil para um ocidental ver uma mulher de burca e dizer: aí está uma pessoa oprimida. Para a senhora, é fácil detectar a opressão à mulher no Ocidente, por exemplo no Brasil?
JOUMANA: Claro. Vi muitas mulheres oprimidas aqui. Mulheres que aceitam ser tratadas como um pedaço de carne. Isso não é diferente da burca. É o mesmo. Num caso, o sistema patriarcal obriga a mulher a anular sua presença com o véu. No outro, os mesmos valores patriarcais forçam as mulheres, às vezes de forma inconsciente, a aceitarem ser tratadas como um acessório de sedução para satisfazer os olhares, em vez de ver sua verdadeira identidade e seguir suas ambições e sonhos, em vez de apenas negociar com os homens como Sherazade, e foi por isso que eu a matei.