segunda-feira, 26 de novembro de 2012

2. Se o telhado for mal construído ou estiver em mau estado, a chuva irá entrar na casa; assim a cobiça facilmente entra na mente, se ela é mal treinada ou fora de controle.













































As múltiplas dimensões de uma canção

 


Primeiro, a história. Guinga mandou para José Miguel Wisnik uma melodia para ser letrada. Wisnik trabalhou, mas não conseguiu encontrar o fio de Ariadne que o levasse a colocar em palavras algo que aquela melodia trouxesse. Demorou tanto que Guinga, achando que entregara os pontos, passou a melodia para Mauro Aguiar. Mauro não se fez de rogado, e por vias certamente diversas das que Wisnik teria percorrido, chegou a uma letra, acrescentando uma canção a sua parceria com Guinga, que se chamou Canção Desnecessária
Mas o que seria o fim da história na verdade é seu começo. Pois Guinga, talvez por gaiatice, chamou o paulista Wisnik para cantar num show no Rio a canção que não fizera. Wisnik, num telefonema a Guinga, clamou: Não desista de mim! – e assim achou o fio que procurava há tempos. Desta exclamação surgiu a letra de Wisnik para a mesma melodia que Mauro letrara, agora com título espelhado: Canção Necessária. Canção agora dupla, com duas letras.
Wisnik então entra em contato com Mauro para contar o ocorrido e, nas palavras de Wisnik, pedir licença para que a Canção Necessária convivesse pacificamente ao lado da Canção Desnecessária. A partir da resposta amistosa de Mauro, Wisnik então chegou a uma segunda/terceira canção, desta vez parceria dos dois letristas da canção de Guinga. Nossa canção, desde seu título duplamente referencial, fechando o triângulo. E quando a história realmente termina, aí é que tudo começa.
Começa porque da interrelação entre estas duas canções que são três surge um questionamento fundamental: da necessidade da canção, e por extensão, da obra de arte. O próprio Wisnik, em sua coluna semanal no jornal, vai tratar disso, ao resenhar informalmente o livro de Lorenzo Mammi O que resta – arte e crítica de arte. O texto a seguir é de Wisnik, mas eivado de citações de Mammi entre aspas. Tomei a liberdade de retirar as aspas, ficando o resultante como uma espécie de texto parceria entre os dois.
A arte sempre se instalou, desde seu surgimento no fim da Idade Média, num lugar intervalar entre os campos existentes, de tal modo que a sua autonomia não consiste na determinação de um campo separado e exclusivo, mas na maneira como seus objetos se desvencilham de todas as grades conceituais existentes e as recriam a partir de si próprios.
Obra de arte é a própria sobra que se dá no esgotamento dos outros discursos, graças à sua capacidade de escapar aos sentidos fixados. Ela é o resultado precário de um resto, mas também o fundamental que resta, quando tudo mais acaba. Obras de arte são esses objetos enigmáticos que pedem novas e continuadas leituras e releituras, vazando o tempo de maneira particular.
Esta idéia da relação da obra de arte com o tempo como condicionante e moldante de sua (des)necessidade é tratada com absoluta leveza nestas três canções, com abordagens diversas e complementares, cheias de pontos de contato. Uma possibilidade de abordagem nesta relação é, como Mammi/Wisnik destacam, a dos infinitos desdobramentos e releituras que a boa obra de arte é capaz de causar no correr dos anos, séculos, mesmo milênios (pois Mammi exemplifica com pinturas rupestres pré-históricas e, stritu sensu, pré-artísticas). Outra abordagem, mais prosaica talvez, mas também um microcosmo temporal desta outra, é apresentada nestes versos de cada uma:
Canção Desnecessária
Amor que vem na valsa
Mas que só se confessa
Quando a valsa cessa
Canção Necessária
No último segundo
eu grito: para o mundo!
que eu só sei te amar
(Outra leitura do segundo verso acima seria eu grito para o mundo. Embora também seja possível, e a polissemia seja bem vinda, a forma acima é corroborada por uma pausa súbita do piano de acompanhamento.)
Nossa Canção
Pois as canções
Só são canções
quando não são
mais nossas
Nos versos metalinguísticos das três canções, a mesma noção: a canção é inútil enquanto dura, para se tornar absolutamente imprescindível ao terminar. A transição para o fim, o momento em que a obra de arte termina em sua execução temporal para se eternizar na memória e iniciar, aí sim, a sua infinidade de releituras, reescutas, revisões.
Nas letras das Canções Desnecessária e Necessária um jogo de espelhos tem lugar, com imagens simultaneamente idênticas e invertidas: ambas retratam-se ilusórias, quase inexistentes, etéreas como a suave valsa de Guinga. A de Mauro, valsa avessa, antimatéria; e de Wisnik, letra sobre uma letra que não foi feita. São construídas sobre o inefável, flutuam em nuvens de possibilidades.
A melodia de Guinga, ponta de lança da tradição de construção harmônica da MPB, equilibra-se na ponta dissonante dos acordes, anda nas nuvens, e escala a escada na ponta dos pés na melodia que acompanha os versos de Mauro: Extemporânea / Imaginária / Etérea como o amor. Mauro, parnasiano na escolha de vocabulário, de um romantismo exacerbado com a musa etérea como a valsa, posta quase fora do alcance, e simbolista nas aliterações incessantes. Wisnik, na forma espelhada, já no primeiro verso dá o tom coloquial da proximidade amorosa: já sei que vacilei. O que não implica em perda de intensidade poética. Mas o que em Mauro se resolve em sintaxe, em Wisnik é imagético: no que eu sussurrava / havia fogo e lava
A valsa de Mauro é imersa em silêncio; a de Wisnik é promessa. Uma se ouve nas pausas, outra se lê nas entrelinhas. São suspensões no tempo. Como numa canção o tempo para por três minutos, como a obra de arte tem o poder de promover dentro de si um outro tempo/espaço. Ou muitos. Porque, depois de terminada, a canção se desdobra em outras, outras, outros tempos/espaços diversos. É só quando sua outra dimensão se fecha que todas as suas outras múltiplas dimensões se tornam possíveis. O que Mauro Aguiar e Wisnik fizeram foi desvelar duas destas dimensões num tempo presente. O que permite então multiplicar ainda mais as dimensões resultantes, pela combinação entre estas duas visões possíveis, realidades alternativas e paralelas, duas canções da mesma canção.
Nossa canção se apresenta como um corolário, uma ponte unindo estas duas dimensões irmãs. A começar pelo título, que no singular refere-se simultaneamente a duas canções, ela própria e a outra, que por sua vez é duas. Sua melodia é singela, diatônica com repetições melódicas marcadas; contrastando com a de Guinga, ela caminha, leve, mas com pés no chão. Na letra de Mauro ressoam as aliterações da Canção Desnecessária. Quase didática, em Nossa canção estão implícitos os delírios das canções necessária e desnecessária, aqui realizados, materializados: pois as canções / só são canções / quando não são / promessas.
Mas enquanto as canções, necessárias ou desnecessárias, ao fim de seus passeios nefelibatas, pousam suavemente na tônica, Nossa canção, ao contrário, termina suspensa, “inacabada”, com a última palavra estendida quase indefinidamente, o último acorde retardado como que não querendo terminar, reabrindo com seu fim sem fim a porta dimensional fechada ao fim das outras duas; ou como a mãe que estende o abraço de despedida do filho que sai de casa, como a porta aberta para que ele parta para sua vida, construa seu próprio tempo: é quando a canção não é mais nossa, quando termina, que ela vai começar…

Canção Desnecessária – com Guinga
Canção Necessária – com José Miguel Wisnik
Nossa Canção – com José Miguel Wisnik
P.S. O Leonardo Davino, no blog parceiro Lendo Canção, que recomendo aí ao lado, fez suas próprias leituras, por viezes diversos da questão metalinguística, de duas destas canções: Canção Desnecessária e Nossa Canção. Vale a pena ler também.
E o álbum Indivisível, do Wisnik, pode ser ouvido online inteiro aqui.
P.P.S. Texto publicado, recebi do Mauro Aguiar uma correção importante: ao escrever o artigo, parti do princípio errado de que a Canção Desnecessária já viera com título de Guinga. Errado, ela o ganhou de Mauro, a partir da letra já escrita. Erro já corrigido no texto acima, pode parecer um detalhe insignificante a um desavisado, mas tomo a liberdade de reproduzir uma parte da mensagem de Mauro, em que ele revela alguns detalhes interessantíssimos do seu processo composicional, para que fique claro como a questão do título pode ser fundamental, até para promover diálogos e novos espelhamentos com outras obras.

Na verdade, muito do que eu tento expressar com a Canção Desnecessária, eu pude verificar depois, estava diluído em várias passagens de “O Som e o Sentido” do próprio Wisnik. (…) A canção não tinha nome quando me foi entregue. Ela não se chamava Canção Desnecessária. Esse nome saiu de um verso da canção, que até então eu chamava de Valsa Avessa. Discuti com o Guinga algumas possibilidades de títulos, e até o falecido Paulinho Albuquerque, produtor do CD, pendia mais para Valsa Avessa. Foi quando eu argumentei que Canção Desnecessária era a verdadeira expressão do que se dizia, essa realização do pulsar da canção no tempo futuro, no silêncio povoado de harmônicos.
(…)
Na minha cabeça, Canção Desnecessária era um título que estabelecia pontos tangenciais com Neruda (Uma Canção Desesperada) e Chico (Uma Canção Desnaturada), e tematicamente se aproximava de outra de Chico (Uma Canção Inédita) que ironicamente, e também num jogo de espelhos, não tem nada de inédita, pois tem uma outra letra sobre a mesma melodia escondida no balé “Dança da Meia Lua”, sob o título “Casa de João de Rosa”. Chico letrou as partes instrumentais e marotamente chamou a canção de inédita.
É, Túlio, os espelhamentos e alçapões se multiplicam! Rs!