sexta-feira, 8 de junho de 2012

O canto necessário da violência de Lula Queiroga

Nem só de canções de amor vive a música popular. Mais do que a cultura erudita, é no fio desencapado da arte popular que os choques civilizatórios são transmitidos primeiro, onde se mostram quase imediatamente. Dias depois de qualquer acontecimento relevante nos jornais, já há cordéis sobre o assunto à venda nas Feiras de Caruraru e São Cristóvão. Depois, às vezes muito depois, os analistas acadêmicos vão se debruçar sobre os acontecimentos, como também sobre as leituras dedicadas a eles pelos artistas populares.
Mas a canção popular, por seu caráter singularmente híbrido, intermediário entre o folclórico e o erudito, se permite às vezes esta função mista: ao mesmo tempo repercute e desdobra, espelha e reflete sobre. O compositor popular é um observador privilegiado, um cronista de seu tempo tanto quanto um Balzac ou um Rubem Braga.
Falei das canções de amor na abertura para chegar, de certa forma, a seu oposto: pois também se canta a violência, e é preciso cantá-la, e estes cantos tem a mesma idade dos de amor, assim como os temas que os motivam. Dois assuntos, na verdade correlatos, mereciam análise mais detida: a identificação com o tema por parte de determinados estilos como o rock e o hip-hop, e o fato de ele ser abordado prioritariamente na música representativa das vítimas e/ou da juventude, haja vista as abordagens aprofundadas feitas, em época diversas e de formas diversas, pelos Racionais e Titãs em álbuns inteiros e antológicos, respectivamente Sobrevivendo no Inferno e Cabeça Dinossauro.
Mas notemos que estes estilos musicais que usei como exemplo são eminentemente urbanos, resultado dos cruzamentos recentes com estilos estrangeiros (que estou longe de demonizar, registre-se). Aparentemente, pouco se nota na música do interior do Brasil, nos estilos chamados rurais tradicionais, a violência como um tema recorrente. Ledo engano. Voltando ao exemplo dos cordéis, basta lembrar de um dos mais famosos de todos os tempos, A chegada de Lampião no Inferno.
Ah, mas aqui o tratamento é humorístico! Pois esta talvez seja uma chave para entender o que acontece: o tratamento de violência de forma naturalista por parte da música regional, incorporado ao seu ethos, que acaba interpretado na leitura urbana desta música como algo anedótico, e não levado a sério. Assunto para ser tratado de forma aprofundada, e não irresponsavelmente rasa como aqui. Mas uma indicação de direção, de qualquer forma. O que não impede que haja cancionistas e canções capazes de fazer a conciliação entre estas vivências e visões que podem chegar a ser antagônicas, cumprindo a função de cronistas do cotidiano e também da análise mais aprofundada. Passo sem transição às canções e emendo em algumas citações a propósito:

Atirador – Lula Queiroga – do álbum de 2004 Azul invisível, vermelho cruel
Cano na Cabeça – Lula Queiroga – do álbum de 2001 Aboiando a vaca mecânica
Trechos do estudo Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil, do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz:
• No primeiro período, que vai de 1980 até 1997, as capitais crescem com um ritmo de 4,8% ao ano, superior aos índices do país como um todo, que cresce 4% ao ano. As taxas das capitais se distanciam visivelmente das médias nacionais, deixando entender que seria nas capitais que radicam os focos impulsores da violência homicida no país.
• No segundo período: 1997 a 2003, as taxas de crescimento das capitais praticamente estagnam (crescimento de 0,1% ao ano), enquanto o país ainda mantêm um ritmo de 2,2% ao ano, menor que na etapa anterior, mas ainda elevado, indicando uma mudança nos focos de crescimento da violência.
• No terceiro período: de 2003 a 2010, as taxas das capitais caem significativamente (3,7% ao ano). Mas as taxas do país também caem, com um ritmo bem menor: 1,4% ao ano, com o que as taxas das UF e as das capitais tendem a se aproximar.
(…)
• Desmembrando (a série analisada 1993/2002) em dois períodos, no primeiro, de 1993 a 1999 os índices de crescimento dos homicídios nas capitais e municípios das regiões metropolitanas mais que duplicam os índices de crescimento do interior dos estados. Já nos segundo período – 1999 a 2002 – aumentam drasticamente as taxas anuais de crescimento dos homicídios no interior para 8% aa, caindo de forma drástica as taxas das capitais e regiões metropolitanas. Isso estaria indicando uma forte tendência de interiorização da violência homicida.
Análise do podcast Radinha sobre o álbum Tem juízo mas não usa, o seguinte aos das canções acima:
Dos discos anteriores (Aboiando a Vaca Mecânica e Azul Invisível Vermelho Cruel), Tem Juízo mas não usa mantém a sonoridade que parece soprar do Nordeste em direção ao mundo, uma fusão de rock, eletrônica e música popular brasileira. Os instrumentos acústicos, sobretudo sopros ligados à cultura da música de rua, convivem com guitarras e programações e sons aleatórios, mas sempre significativos. Parece um espaço arrumado com a mão: aqui um ruído, ali uma vibração: está pronto o cenário. A partir daí, é só distribuir a poesia.
Atirador e Cano na cabeça tem bastante em comum. Em ambas, um clima sombrio e feroz, a narrativa da violência de um ponto de vista próximo, em que não há condenações baratas. A empatia se dá com todos os personagens, até mesmo o matador de aluguel cuja ética pessoal é esmiuçada: ele é um profissional, age de modo impessoal, mas alma sebosa é mais barato, porque alguma justiça deve haver neste mundo. Da mesma forma, tanto o trabalhador quanto o pequeno assaltante de Cano na cabeça são vítimas, e antes de serem vítimas (e darem vazão a um discurso sentimentalóide) são seres humanos enxergados com integridade na poética de Lula. O fenômeno da violência é aceito como é, mas sem renunciar ao estranhamento fundamental: a violência é inerente ao ser humano, mas também lhe é alheia.
Do ponto de vista estritamente musical, as duas canções tem outros pontos de contato. As duas trazem em si a fusão de influências externas/internas, rurais/urbanas: Cano na cabeça entre o rap e o samba, caminho aberto por Marcelo D2, mas aqui percorrido de forma bem menos solar; e Atirador entre o rock e ritmos nordestinos como o maracatu, desta vez seguindo uma trilha desbravada por Chico Science, mas de forma mais próxima ao trabalho atual da Nação Zumbi. Ambos ritmos mestiços, nem rurais nem urbanos ou ambos simultaneamente, tratando deste vai e vem da violência entre o campo e a cidade, assumindo diferentes formas desde a luta pela terra ao tráfico e as milícias, e hoje sua nova interiorização com as políticas de reocupação do espaço urbano como as UPPs – formas diversas que convivem e entre si, pois o surgimento de umas não elimina as demais. O atirador cantado por Lula não é história como Lampião, não é anedota: é real, é presente. Dois detalhes para encerrar:
1- O refrão de Atirador usa a escala lídia, que consiste em levantar a quarta nota em meio tom. Atire a primeira (quinto grau), atire a segunda (quarto grau aumentado), iaiá… O efeito conseguido com isso é de uma escala mais aberta, comum em música nordestina tradicional. Seu uso remete exatamente aos repentes laudatórios e épicos a cangaceiros como Lampião, mas aqui se coaduna com uma visão humanizada da figura e do contexto, sem deixar de se inserir numa tradição popular que por si já é muito complexa e acrescendo-lhe ainda outras dimensões. E
2- No final de Cano na Cabeça, um coro de crianças passa a repetir o terrível refrão, tornado então muito mais apavorante. O horror, o horror. O que poderia parecer um golpe sujo e piegas se mostra perfeitamente pertinente ao se pensar que o assaltante da narrativa não passa de um menino. Lula contrapõe à naturalização da violência, sua incorporação ao cotidiano, algo que vem de nossas raízes rurais e está entranhando-se dia a dia em nossas leituras dos jornais, num hábil jogo de reconhecimento/estranhamento, colocando na voz das crianças a verbalização desta violência, como que para curar o ouvinte de qualquer anestesia. A voz rascante, áspera, vivida de Lula, que mesmo em suas canções líricas desvela sempre algo de sofrido, na interpretação tanto quanto na poética, contrasta com a infantil, ambas colocando o ouvinte cara a cara com o que não tem vergonha, nem nunca terá, o que não tem governo, nem nunca terá, sem apelação, sem subterfúgios, sem paliativos e sem cair na fácil terapia de choque, mas chamando a sentir. E a pensar.

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