quinta-feira, 2 de maio de 2013


Pegada de rock, pegada de Brasil

PrestençãoPara que direção fica o Brasil? A história se repete, já se repetiu tantas vezes na música brasileira, em diversos níveis, no macro e no micro, nos grandes movimentos e nos caminhos individuais. A busca por uma música brasileira que seja cidadã do mundo passa necessariamente por ir fundo no que ela tem de mais característico. O Brasil fica para dentro, mas para ir para dentro, por óbvio (mas radicais nacionalistas esquecem com frequência) é preciso vir de fora… A fusão de influências externas de gerações que cresceram ouvindo e fazendo rock e forjaram paradigmas de como fazer música brasileira em seus trabalhos é algo recorrente, com soluções diversas. Novos Baianos, Clube da Esquina, Nordeste 70, todos deixaram influências fortes e seguidores. Flávia Muniz não faz por menos, e é seguidora de todos eles, mas à sua maneira particular.
Flávia participou e participa da banda Luiza mandou um beijo (o nome, segundo ela, é inspirado sintaticamente no Asdrubal trouxe o trombone), que sob a classificação deindie rock lançou três álbuns, teve o primeiro lançado na Inglaterra e na Espanha, participou de coletâneas internacionais de selos do Japão, Singapura, Itália e Alemanha, além de uma compilação latino-americana, entre outras coisas. E então Flávia fez um álbum solo, e descobriu o Brasil.
Minto. Conheço Flávia pessoalmente há anos, e sei perfeitamente que ela não descobriu o Brasil agora – como também que o som da Luíza mandou um beijo não é exatamente seu, mas de um grupo que ela integra. Mas seu trabalho sim, repetiu o trajeto da descoberta – ou seria mais próprio dizer que foi o Brasil que aportou em sua música. E o efeito que isto faz no ouvinte é o de um alumbramento, uma epifania, uma exploração por um terreno desconhecido.
Minto de novo, nem tão desconhecido assim. Aperfeiçoando a impressão, é a de um Brasil que finalmente tem a chance de aflorar na música da Flavia, e surge aos borbotões, transbordante, e com um vigor e um frescor que vem metade de seu próprio emergir, e outra metade – e aí voltamos ao primeiro parágrafo – do seu próprio background numa banda de rock. É aí que entra a pegada. A primeira.
As canções de Descalços sobre a terra são em sua maioria curtas. Nenhuma chega a três minutos e meio, algumas não passam de dois. Vão direto ao ponto. Introduções curtas, e às vezes nem há introdução, poucas repetições. Mas várias delas tem mudanças de andamento e/ou ritmo internas, às vezes mantendo-se dentro de um universo, como o maxixe que irrompe no meio do samba em Cocorocô, às vezes bruscas a ponto de a canção se converter numa mini-suíte, como na experimental Comment tu t’appelles? ou o compasso alterado/alternado entre ternário e quinário de Paralelamente ao Mar. Flavia cita uma profusão de influências no release do álbum, de Vinicius e Baden à Tropicália, passando por várias cantoras como Nara Leão e Marisa Monte. Cada uma destas citações tem seu sentido específico, mas o que me vinha à mente com mais frequência ao ouvir o álbum repetidas vezes eram dois nomes coletivos que ela não citou: Clube da Esquina e Novos Baianos.
O motivo é simples: ambos fizeram música brasileira tendo ouvido e tocado prazerosamente rock. Milton, Lô e seus amigos digerindo de Beatles ao rock progressivo e produzindo um repertório de toadas, canções, batuques. Moraes, Pepeu e Baby ouvindo Jimi Hendrix e Janis Joplin e caindo no samba. Alás, a voz de Flávia por vezes soa como a de Baby, não por virtuosismos ou técnica, mas justamente pela despreocupação de uma voz descolada, que procura sempre o caminho mais simples, sem nenhum constrangimento. Caminho mais simples que também está nas composições de letra imagéticas, simples – não simplórias. Flávia sabe perfeitamente onde quer ir – e aí chegamos na segunda pegada.
Todo o álbum é um mosaico de ritmos e manifestações culturais, um passeio. Flavia não defende teses nem tem nada de purista. O mote do álbum se anuncia da primeira à penúltima música (a última merece uma consideração à parte): Flavia vai cantar o Brasil onde a gente mora, vai em busca das Raízes brasileiras. Aqui cabe questionar se estes dois são o mesmo. Uma discussão complicada e cheia de desdobramentos. O que Flavia faz é uma espécie de reconhecimento, que correria o risco de soar ingênuo se não soasse tão natural. Flavia se mete num debate sobre identidade nacional e escapa dele respondendo de forma absolutamente pessoal. Sua busca não é frenética, não tem drama nem tensão, não é preocupada, não é um resgate. Seu prazer é o procurar, e ela passeia pelo tempo e espaço, por história e território. Referências diretas às heranças indígenas e africanas se espalham pelas faixas, e assim como no tempo/espaço brasileiro estas influências se misturaram, ao longo do álbum elas se amalgamam de formas diferentes em cada canção, em sambas, baiões, eventualmente um reggae…
Duas canções, particularmente, recorrem a uma solução em comum: Mãe d’água eFesta em Aruanda são pontos de umbanda, nem mais nem menos, e ouvindo-os afasta-se qualquer suspeita de que a simplicidade das composições de Flávia seja simplória. Sua escrita idiomática é perfeita, no desenho melódico e estruturação, coisa de quem entende do riscado – e do cantado. Esta solução torna-se digna de nota porque é na Umbanda que as tradições índia e negra têm talvez seu encontro mais marcante, numa religião criada aqui no Brasil onde se misturam divindades de lá, como Oxalá, e daqui, como a Iara, que se tornam todos daqui, numa outra instância. É como se Flávia buscasse um pré-brasil, um infra-brasil, remanescente e sobrevivente a 500 anos, como quando diz: Tento entender como era / antes do colonizador. Mas ao mesmo tempo basta olhar em volta para enxergar este Brasil remanescente. Por isso a música de Flávia é um fruir, ela canta o prazer das coisas em volta, este é seu reconhecimento. Ela procura as raízes brasileiras balançando na rede em Feira de Santana.
A última canção, à primeira audição, não faz sentido no todo do álbum, cantada em espanhol com uma música incidental transfigurada da ária de Carmen, de Bizet e uma brincalhona cadência de música flamenca. Mas a letra de Tengo Suerte já principia avisando: Luiza mandou um beijo, ou melhor, uma carta. É o acerto de contas de Flávia com com sua carreira pregressa. Flávia não nega o que fez para se realinhar numa brasilidade purista, ela traz junto para o Brasil e responde a Luiza: Minha voz tem um Passaredo. Ela deixa suas pegadas entre o Brasil de antes do colonizador e o Brasil onde a gente mora, um espaço vasto. O Brasil de Flávia é pessoal, mas estão todos convidados.
Brasil onde a gente mora

Mãe d’água

Descalços sobre a terra


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